Domingo, Outubro 13, 2024
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Marcelo Martinessi: “É fascinante olhar para a sociedade através dos olhos das mulheres”

ENTREVISTA / AS HERDEIRAS

Falar com Marcelo é descobrir um pouco mais sobre a história e cultura do Paraguai. E de um cineasta que sente o embaraço de pertencer a uma elite que repudia, mas tem a determinação de levantar os braços e fazer um cinema que temos de conhecer. As Herdeiras (leia aqui a crítica) estreia esta semana em algumas salas selecionadas.

 

Paulo Portugal, Berlim

Devo dizer que pedi esta entrevista consigo sem conhecer bem o seu trabalho. Fiquei curioso por se tratar de uma primeira obra de um cineasta do Paraguai na competição em Berlim. Acrescento também que fiquei agradavelmente surpreendido, embora pensasse que este tema vincasse mais o lado patriarcal desta sociedade. Optou por não o fazer, a meu ver de um modo que tornou As Herdeiras num filme ainda mais interessante. Desculpe, se não começo propriamente com uma pergunta…

Compreendo. E obrigado pelo comentário, ainda bem que gostou. Eu pensei nisso, porque o filme tem a ver com emoções que estão apenas no interior das personagens. Eu vejo muito cinema em que me sinto manipulado. Prefiro o cinema em que podemos colocar a nossa própria experiência no ecrã e nas personagens, sentindo coisas que não passam pelo crivo na manipulação de quem o está a realizar. Dito isto, este filme sintetiza toda a minha relação com o cinema, tentando não manipular. No caso desta história, escrevi-a depois de passar um ano com as personagens – com a Chela e a Chiquita (respetivamente Ana Brun, uma estreante, e Margarita Irun, apenas com uma colaboração no cinema em 2010, mas uma longa carreira no teatro). Foi ótimo poder desenvolver com elas uma relação que em acho que elas sentiram todo esse processo. Quis trabalhar um certo nível de subtileza, especialmente numa história em que estamos a tratar de mulheres que operam numa fibra muito fina da sociedade. Elas falam muito mas não dizem nada. Isto para evidenciar uma sociedade onde o rumor é uma forma eficaz de classificação.

Nesse sentido, é curioso o filme começar com a imagem da câmara que parece espreitar, observar. Isso está relacionado na forma como encara a realidade?

Nós falamos sempre de uma personagem que olha para o mundo. Essa cena estava na minha cabeça há uns cinco anos. Sempre quis revelar alguém que vinha das trevas. Sempre senti que o Paraguai era uma prisão enorme, onde temos apenas duas opções: adaptar-nos ou permanecer como marginais. Acho que somos filhos de uma geração perdida. Pelo menos todos aqueles que viveram durante (Alfredo) Stroessner (liderou a mais longa ditadura da América Latina, de 1965 a 1989). O meu pai tinha 10 anos quando o Stroessner se tornou presidente e eu 16 quando abandonou o poder. Essa é uma geração perdida que teve de se adaptar. Eles tinham de obedecer ou abandonar o país. Essa era a única opção. Também herdamos isso, pois fomos educados por essas pessoas. Foram esses os valores que nos transmitiram. A herança até pode vir de uma casa bonita, mas vem cheia de imensos preconceitos.

Confesso que demorei algum tempo até compreender o grau de envolvimento destas duas mulheres, se eram amantes. Era importante para si essa definição?

Devi dizer que nunca vi muitos filmes lésbicos e não queria que este filme fosse um filme de lésbicas. Queria que fosse um filme sobre duas mulheres que se amam mas estão numa relação desgastada. Já viveram a sua paixão e agora são apenas companheiras. Senti que não tinha de explicar muito mais, que não tinha de explicar o sexo. O filme era outro.

Gostei dessa sua opção.

Obrigado. Sei que algumas pessoas irão apreciar isso, mas outras irão precisar de algo que seja mais explícito. Provavelmente, essas pessoas não se irão relacionar com o filme. Por outro lado, ao não mostrar certas coisas poderei levar as pessoas a pensar na razão porque não o terei feito. Essa é a minha proposta aos espetadores nesta viagem: tentarem descobrir essa outra história. Este é um país onde as pessoas que não têm poder ficam à mercê do poder dos outros. Isso é muito forte na América Latina. Achei curioso estas duas mulheres que vivem um processo em que uma delas vai entrar numa prisão ao passo que a outra está a tentar sair do seu próprio cárcere privado.

Interessante esse processo de sair da sua própria prisão.

Desde o início queria que uma das primeiras coisas que a Chela dizia era que “não quero sair lá para fora”. Isso foi difícil porque a Chela não aprendeu muitos diálogos, a maior parte das vezes é ela própria. No fundo, queria passar a ideia de que estas eram mulheres que estavam a perder o seu lugar na sociedade, mas estavam a aprender muito através dessa perda. Aprender o toque, a sentir o toque de outras pessoas, por exemplo. Isso não acontecia na nossa sociedade. São códigos pessoais de classe.

O que o motivou então a fazer este filme sobre mulheres?

Eu fui criado por mulheres. Para além da minha nanny, a minha mãe, avó e irmãs tomaram conta de mim. Desde cedo que senti que escrevesse ou fizesse algo seria sobre essas vozes que sempre ouvi. Fiz várias curtas, mas nunca escrevi nenhuma história. Esta é a minha primeira história. Fiz adaptações literárias e sobre uma criança que vivia na rua. Mas quando senti que ia fazer uma longa percebi que queria trazer a câmara próxima para o meu mundo. E falar do mundo em que cresci. Estas mulheres que comentavam sempre a vida das outras. De certa forma, espelhavam a vida dessa sociedade. Para além disso, queria trabalhar com o tempo, com mulheres mais velhas. A ralação da Chela e Chiquita é muito desgastada pelo tempo. De certa forma, são vários elementos de várias pessoas que conheci.

O filme é rodado em espaços muito limitados. A casa, o carro, a prisão e mesmo quando está no campo. Foi importante confiná-las a esses espaços?

Foi importante porque este é um filme sobre isso mesmo, sobre o espaço limitado. Eu cresci numa casa com muros altos em que nunca podia sair, porque me diziam que era perigoso. A elite paraguaia cresceu rodeada de medo, um pouco com a elite em outros países. No filme quis manter isso, apesar de estarem a perder o seu estatuto social. Quis fazer este derradeiro esforço para não se sentirem fora dessa pequena bolha.

Um dos motivos que me fez desejar esta entrevista foi também por esse desconhecimento que existe sobre o cinema do Paraguai. 

A história do cinema no Paraguai é muito diferente. Tivemos o Cinema Novo e esse cinema resistente que foi muito grande nos anos 60 e 70. Mas o Paraguai não tinha cinema. Apenas uma média metragem em 1969, chamada El Pueblo. Para além desse filme não existem imagens desse tempo. É um tempo de trevas. Sinto que a nossa geração tem de criar um diálogo com esse período. De certa forma, acho que o cinema do Paraguai é algo novo. Só nos últimos 15 anos começaram a surgir os primeiros filmes, as primeiras imagens. Sinto que temos de nos apropriar de uma forma do que queremos fazer. E ainda bem que nos estamos a apropriar de diversas formas.

Sente que essa realidade está a alterar-se?

De certa forma. Temos filmes de terror, filmes muito série B que adoro. Neste momento, é fascinante fazer filmes no Paraguai. Mesmo a Bolívia tem uma Cinemateca. O Uruguai também tem uma das primeiras da América Latina. Nós somos muito diferentes, não temos uma Cinemateca, nem um instituto de cinema, não temos qualquer apoio para cinema. É um milagre fazer cinema no Paraguai. Nós tivemos algum apoio estatal porque estamos a tentar criar algum tipo de incentivos. Pertencemos à Ibermedia, o fundo da América Latina, mas este ano disseram que não podiam pagar mais à Ibermedia. Portanto não vão ter mais Ibermedia. Isso é trágico, mas é também excitante.

Como foi a sua jornada a contornar esses obstáculos e fazer o seu filme? E de que forma a sua própria experiência o moldou enquanto cineasta?

Sempre disse que apenas faria curtas metragens. Como estava à frente da televisão pública no Paraguai, na altura em que tínhamos um governo socialista do Fernando Lugo, desde 2008 até ao golpe de estado de 2012. Saí dessa experiência muito transtornado, a odiar o Paraguai. Decidi então fazer um filme com todo esse ódio para me tentar curar. Então fiz uma pequena curta chamada La Voz Perdida, que esteve em Veneza há dois anos (2016) – vencedora do prémio Horizontes – acho que este é um filme para tentar curar tudo aquilo que se passou durante aquele processo. Durante esse período tentámos criar uma lei, nós os cineastas escrevemos essa lei para tentar assegurar fundos, nomeadamente do Brasil, que pudesse ajudar a fazer filmes. Portanto, não é só fazer um filme, no Paraguai temos de criar a atmosfera para que esse filme possa ser feito.

Como está a situação política hoje em dia? Sente medo?

Eu pertenço a uma classe privilegiada, não tenho problemas. Apenas ameaçam pessoas que não se podem defender. Neste momento, existe uma competição entre mafias, com os media, os negócios, eles é que decidirão o que se irá fazer com país. Isso nunca mudou. Tivemos essa Primavera, em que começamos a falar de saúde pública, direitos LGBT, salários mínimos para as mulheres domésticas, muitas coisas que nunca foram discutidas. Este processo foi cortado em 2012 (com o impeachment ao Presidente Fernando Lugo). Parece que estas pessoas querem o tipo de sociedade que nunca muda. Portanto, não sei que rosto terá o novo governo. Não será o mesmo tipo que está no poder (Horacio Cartes), um tipo que é quase declarado traficante de droga. Sei que não estou a dizer nada de novo, já que ele tem processos por toda a América Latina e ninguém faz nada. A face pode mudar, mas o sistema permanecerá o mesmo. Acho que estas pequenas burguesias têm de pensar bem porque são elas que têm romances com grande ditadores de forma a manter os seus privilégios.

Acha que este filme pode mudar alguma coisa? Ou pelo menos ser visto por aquele que o devem ver?

Não sei. O processo é muito longo. Já dura há décadas. Se o filme puder levar alguém a pensar já será muito bom.

É curioso porque neste filme os homens estão omissos, ou aparecem apenas de forma esporádica, ou quase como mulheres.

Sim, é isso. O primeiro que vemos mostra o seu tronco nu. Aí seu pensei, porque não usamos os homens como normalmente são usadas as mulheres? Isso só surgiu durante o casting. É fascinante olhar para a sociedade através dos olhos das mulheres.

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