Entre as várias sugestões de documentários de viagem, recentemente preservados, destinados à secção Il Mondo che cera, il Mondo che verrà (o mundo que será, o mundo que virá), recebidos por Jay Weissberg, diretor do Giornate del Cinema Muto, cativaram-no alguns registos de formas de colonização distintas — a antiga e a moderna. Esse foi o ponto de partida para lançar uma ponte entre o tempo destrutivo em que vivemos e o redesenho possível desses locais. Esse é um caminho que nos leva à Palestina, ao longo do período da Primeira Guerra Mundial e à consequente ocupação britânica, antes da ocupação israelita, mas também a um Rio de Janeiro, decorativamente ambientado, entre 1930 e 1931.
Após ler a informação constante do catálogo do festival, tornou-se claro dar espaço aos protagonistas ou àqueles que conhecem melhor o som e o contexto desses filmes. No caso dos olhares implicados na Palestina, no programa Villégiatures – Palestine – Béhléem, foram bem redesenhados pela cineasta Lina Soualem (filha da atriz palestiniana Hiam Abass); a que se junta a acutilante contribuição do cineasta brasileiro Kléber Mendonça Filho, a propósito das imagens decorativas de A Capital do Brasil.
A este programa acrescenta-se ainda o evento Palestine – A Revised Narrative, uma montagem de excertos de clips de arquivo de notícias (newsreels) filmados na Palestina entre o período da Grande Guerra — ou seja, entre 1914 e 1918 — cedidos pelo Imperial War Museum, e que incluem, por exemplo, imagens de Gaza a ser bombardeada em 1917. Foi a partir deste material que Cynthia Zaven e Rana Reid criaram uma performance que atua sobre os materiais de arquivo, procurando ressonâncias sonoras e narrativas cruzadas entre a memória e a identidade. A estreia italiana ao vivo será na sessão de quarta-feira, dia 8.
Vamos a Villégiatures. As palavras de Lina Soualem são poderosas. Fiquemos com elas: “Homens muçulmanos, mulheres cristãs, beduínos. A palavra ‘Palestino’ nunca aparece. Não temos nome. Sem grandes planos dos nossos rostos. Sem reflexões sobre as nossas histórias, sentimentos ou pensamentos políticos. Somos parte de um cenário bíblico. Habitamos uma paisagem enquanto figurantes de um filme: Belém, Hebron, Ajloun (Jordânia), Ain Karem, Haifa, o Mar Morto, Nazaré.” Assim reflete Lina Soualem. A lenda um alerta em forma de apelo: “estas são imagens de nós próprios. São preciosas porque, embora raras, representam a única pista visível de um passado do qual fomos apagados. A prova da nossa existência. Mulheres, homens, crianças, habitantes da cidade, beduínos, pescadores, agricultores.”
Ela descreve ainda que essas imagens, captadas em contexto colonial, são considerados “objetos de fantasia, repulsa ou desejo”. No fundo, porque registos “foram “preservados e restaurados pelas próprias autoridades ex-coloniais”. E deixa o repto: “Hoje, enquanto cineastas, temos de pagar a essas mesmas autoridades para obter e utilizar essas imagens de nós, dos nossos países e dos nossos antepassados.” Nem mais.

“É importante que possamos ver e aceder a essas ‘imagens de nós próprios’. É ainda mais importante, enquanto palestinos, que as possamos utilizar livremente nas nossas obras, extrair as suas essências, transformar os seus significados, restituir a nossa memória — contar histórias que nos representam e dar-nos o direito à complexidade.”
Para Palestine – A Revised Narrative, a compositora Cynthia Zaven reconhece que viu “fotografias da Palestina, ainda do século XIX, embora nunca tenha assistido a filmes desse período, captados no território — de Gaza a Jerusalém, Názaré ou Jafa”. Para Soualem “descobrir este material foi perturbador. São comoventes as cenas em que vemos comunidades de muçulmanos, cristãos e judeus a viverem o seu quotidiano. Especialmente num momento em que essas imagens de coexistência foram apagadas e Gaza erradicada do mapa.” Seguramente, esta foi “uma razão para abraçar este projeto com todo o entusiasmo.”
Desde logo, através da música que permitiu “fez “emergir um outro som e uma outra verdade. Afinal de contas, a música como paisagem. Um elemento frágil, embora com uma vida própria”, como reflete. E sintetiza: “se estas imagens foram controladas pelo colonizador, então talvez o som e a música pudessem reivindicar um novo espaço e uma nova narrativa nestes tempos.”
“Não existem coincidências”
Sobre A Capital do Brasil, temos de dizer que estamos em presença dos típicos jornais de atualidades, como os lusitanos que fizeram futuro durante o Estado Novo, destinados a celebrar uma versão colonial e europeizada do Rio de Janeiro, justamente, corrida o ano 1930-1931. Mas é então a descrição atualizada, oferecida por Kléber Mendonça Filho, que lhe devolve essa visão de “glamour”, no melhor estilo bilhete-postal, encarada como “um portal para a terra dos mortos”, no seu entender. Como se a cidade existisse realmente numa existência paralela.
O autor de Agente Secreto (um dos filmes deste ano, ambientado justamente numa cidade — não o Rio, mas Recife, a terra natal de Kléber Mendonça Filho), revela o seu “amor conflituoso” pelo Rio de Janeiro, “só perdoável pela sua beleza desorganizada e caótica, que perdeu grande parte da sua arquitetura colonial ao longo do último século”.
É dessa sensação das “cidades que respiram e se asfixiam” que Kléber se queixa. Desde logo, pela ausência de imagens de rua, de grandes planos que dêem imagens aos corpos das pessoas comuns. Uma falha “frustrante”. Ainda assim, o documentário transmite uma sensação de “álbum de família perdido, de um certo estilo de fazer imagens no final do século XIX e início do século XX”, algo que lhe proporciona o mesmo entusiasmo de quem encontra “relíquias que dão sentido às raízes de uma cultura esquecida”.
A reflexão de Mendonça Filho está profundamente enraizada na sua ligação ao cinema e às imagens do passado do Brasil. Ele conclui que “não existem coincidências”, ao recordar que Jay Weissberg lhe pediu para assistir a esse filme — e que, ao fazê-lo, percebeu que era “um verdadeiro presente”. Aliás, uma descoberta que o haveria de inspirar na criação de um novo projeto, ambientado precisamente na mesma época, no Brasil dos anos 1930, revelando como o passado continua a influenciar a sua visão de mundo e o seu trabalho de cineasta.
Ainda no contexto das guerras atuais com ecos no passado, curioso o programa dedicado às crianças ucranianas. Numa altura em que a Ucrânia pertencia à União Soviética, produziam-se diversos filmes sobre essa faixa etária como forma de criar modelos das gerações seguintes. Foi o caso de Troye/Three, de 1928, assinado por Oleksandr Solovyov, com guião de Vladimir Mayakovsky, e ainda Pryhody Poltynnyka/The Adventures od a Penny, de 1929, por Axel Lundin.

