“E quando ele abriu o quarto selo, eu ouvi a voz da quarta besta dizer ‘Vem e vê’. E olhei, e vi um cavalo pálido; e seu nome que estava nele era Morte, e o Inferno o seguiu. E lhes foi dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar com espada, e com fome, e com a morte, e com os animais da terra.”
(Novo Testamento, Apocalipse)
Talvez um dos maiores méritos de Vem e Vê, e são vários, será a dimensão poética de um espaço e de um tempo, no relato de uma das páginas mais horrendas da 2ª Guerra Mundial, ou seja, permitindo um momento de paz onde só parece existir selvajaria. Ao adaptar o guião desenvolvido pelo bielorrusso Ales Adamovich, a partir da sua própria experiência e de outros sobreviventes dos massacres das tropas nazis na região, em 1943, Elem Klimov consegue a proeza de fixar esse registo embora se sinta a necessidade de sublimar esse realismo com a elevação poética e quase religiosa da descoberta do amor ou a perda da inocência em atributos que diríamos pré-Malickianos (quem sabe inspiradores da verve poética de Thin Red Line). Como se Klimov nos quisesse dar uma boia de apoio e sanidade antes da selvajaria que se seguirá. É por aí que iramos seguir o adolescente Flyora (Aleksey Kravchenko) e o seu despertar para o que poderia ser um a vida bem diferente pela sedução inocentes e sonhadora de da bela Glasha (Olga Mironova). É disso que tentam escapar ao mover-se com dificuldade naquele pântano gelatinoso do início, como se tratasse de um pesadelo.
É talvez esse um dos elementos mais fortes no admirável Vem e Vê, de 1985, embora numa estreia de luxo (o filme apenas foi editado em DVD em 2007, pela Midas, que agora devolve a possibilidade de o desfrutarmos na sua plenitude em sala), numa cópia de restauração imaculada premiada o ano passado nos clássicos do festival de Veneza.
No inicio do filme, o rosto de um velho militar vocifera comandos numa praia deserta. Aqui se abre a porta entre o peso da História e o mundo juvenil de garotos que procuram na praia artefactos de guerra de um conflito anterior. Um deles é Flyora (Aleksey Kravchenko, na sua estreia, na altura com 14 anos) que brinca às guerras antes dela bruscamente lhe bater à porta com a invasão nazi na Bielorrússia e o consequente alistamento nas milícias soviéticas onde haveria de testemunhar o genocídio de aldeias inteiras. Um cartão no final explicará que “os nazis queimaram 628 aldeias bielorrussas com todos os habitantes lá dentro”.
Este era um projeto antigo de Klimov, ainda antes da trágica perda da mulher, a genial cineasta Larisa Shepitko (autora de Ascenção,por exemplo, de 1977), num acidente de automóvel, quando fazia répérage para o filme Adeus a Matiora, concluído pelo marido em 83. Talvez a sua amargura o tenha empurrado para recuperar este projeto que estivera para se chamar ‘Kill Hitler’, pelo clamor universal que emanava desta tragédia, embora o título tenha sido chumbado pelas autoridades russas, como o próprio explica num longo documento vídeo sobre este projeto. Klimov voltou-se então para o do último livro do Novo Testamento, Apocalipse, onde encontrou a expressão repetida várias vezes “Vem, e vê!”.
Recorde-se que Klimov era ainda criança quando testemunhou a longa e terrível batalha de Stalingrad, considerada talvez a mais mortífera da 2ªGM (ou mesmo de sempre), em que pereceram ao todo mais de dois milhões de pessoas (incluindo um milhão de tropas russas, cerca de 850 mil soldados das forças do Eixo e inúmeros civis). No documentário em que apresenta Vem e Vê o cineasta recorda uma cidade com mais de 60kms de distância literalmente em chamas, devido aos poços de petróleo de Baku, no Caucaso, incluindo o próprio rio Volga inundado pelo petróleo a arder na água.
Estas terão sido razões de sobra para fazer este autêntico filme anti-guerra, bem como para solicitar a colaboração do veterano de guerra e ‘partisan’ Adamovich, que relatou essa crónica do seu livro ‘Khatyn’, em que tanto Flyora como Glash são as personagens que refletem, durante uma viagem ao monmento dessa memória, esse mesmo passado ocorrido durante a guerra e, em particular, o massacre dos habitantes da aldeia queimados dentro de um celeiro. Para além disso, talvez se torne inevitável também a associação paradoxal do romance ‘Khatyn’, na origem ao guião deste filme, na altura proibido pela censura russa, ao ‘massacre de Katyn’, também ele retratado pelo cinema no filme homónimo de Andrej Wajda, em 2007, no qual morreram mais de duas dezenas de milhares de militares e eruditos polacos pelas ordens de Stalin, em 1940. Isto numa altura em que a União Soviética – entre 1930 e 1940 – foi aliada da Alemanha, invadindo a Polónia e vários outros territórios europeus e cometendo vários massacres como o de Katyn. Naturalmente, a semelhança entre nomes (Khatyn e Katyn) acabaria por gerar também alguma amnésia (intencional ou não).
É talvez esse romance de Adamovich a permitir uma maior clareza sobre o cinema de Klimov. Sobretudo por se sirvir da premissa niilista de Os Irmãos Karamazov, em que se especula: sem Deus e imoralidade, será tudo permitido? Adamovich parece seguir numa outra direção, e aceitando Deus. Talvez seja aquele avião de reconhecimento que vemos ao longo do filme.