Sexta-feira, Dezembro 6, 2024
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CineEco: A lama, as ovelhas, o nuclear e o cinema a caminho do Antropoceno

Foram poucos dias e apenas os filmes possíveis, ainda assim mais do que o suficiente para perceber a amplitude temática e a força do cinema ecológico nesta 25ª edição do CineEco que uma vez mais nos ensinou e surpreendeu. Independentemente dos eleitos pelo júri oficial – um trio feminino composto pela portuguesa Elsa Cerqueira, da direção do Cineclube de Amarante, a cubana Yuleyvis Valdés Alvarez, do instituto de Arte e Indústria Cinematográfica, e ainda a argentina Florência Santucho, diretora do festival FINCA -, a conhecer já este sábado, valerá a pena deixar aqui algumas notas de mérito a alguns filmes da Competição Internacional de Longas Metragens. Pois alguns ficaram por ver, hélas.

Da moldura global dos problemas causados por O Homem Comeu a Terra, à procura de um estilo de vida alternativo em O Herói das Ovelhas, ao desastre da ganância transformada em lama testemunhado em Injustiça, à tentativa de fazer renascer um mamute siberiano através de engenharia biológica em Genesis 2.0., ou finalmente à reflexão ambiental anti-nuclear proposta por O Geógrafo e a Ilha. Ou o poder das imagens em Terras Frias.

Viagem ao Antropoceno

Essa foi uma viagem fascinante, complexa e inquietante ao poder do ser humano e à sua ansiedade para se adaptar ao mundo e o dominar, por vezes muito para além dos seus limites. Talvez por isso um filme como O Homem Comeu a Terra, uma pequena obra-prima do francês Jean-Robert Viallet, servido por uma narrativa em off, nos permita acompanhar a ânsia humana do eterno progresso no decurso de um inteligente relato ao início das revoluções industriais, com o tempo para perceber o que se ganhou (e sobretudo o que se perdeu). Tudo isto algures no processo de exploração do globo generoso, pleno de oxigénio e água que em pouco mais de duzentos anos passou a ser invadido por 1400 milhões de toneladas de CO2 emitidas desde o início da industrialização e presas na baixa atmosfera. Assim começa este didático e urgente filme, como que organizando uma memória elaborada por valiosas imagens de arquivo. E aí nos vem falar do progresso que nos deu melhores maneiras de viver, mas também o napalm, os pesticidas, os resíduos nucleares e o aquecimento global. Antes desta era do desenvolvimento humano, definida por estudiosos científicos como o Antropoceno, medeia-se um período de 11700 anos após a última glaciação. E o que será o Antropoceno? Talvez a idade do Homem, ou a revolução geológica como sugere o documentário, combinando as descobertas tenológicas com as decisões políticas que nos levaram à globalização ou à atual crise ambiental. Em que percebemos como o uso maciço do carvão substituiu a madeira como combustível, já na altura considerado como uma dádiva da terra e impeditivo da desflorestação. Um bem ecológico, portanto. Estávamos no final do século XVIII.

Daí vamos para a exploração do algodão, ao ímpeto colonizador em busca de recursos. Até chegarmos à Lua. Pelo meio, revivemos todos estes períodos, em que se inclui também o uso e as consequências dos pesticidas, e do atual agronegócio; da produção em massa pelas linhas de montagem americana, ao uso do petróleo e a utilidade da indústria de guerra como geradora de grandes fortunas, até à química e a energia atómica, etc. etc. O filme de Viallet permite.nos assim viver a História em imagens fastforward que nos deixam uma profunda inquietação e recordam como a necessidade de crescimento e bem estar tem estado ligada ao estado em que estamos hoje, de eminente ruptura ecológica e catástrofes sucessivas, mesmo apesar dos sucessivos alertas ao longo os tempos que nos deram a globalização.

 

Lama em vez de gás natural

Talvez este filme possa mesmo servir como elo de ligação entre tudo aquilo que vimos em Seia. Seguramente, a ilustrar de forma quase caricata como a ganância da exploração de gás natural por parte de uma empresa na Indonésia acabou por tocar num banco de lama nas profundezas do solo gerando um autêntico tsunami que inundou duas dezenas de aldeias na área residencial da ilha de Java. E que aparentemente se prolongará por mais de uma década. Assim se criou  a oportunidade para a dupla de cineastas Sasha Frielander e Cynthia Wade, esta última com ligações a essa geografia, e com inúmeros prémios em Sundance e em outros festivais internacionais, nos devolverem no documentário Injustiça o testemunho dessa realidade, e da realidade da jovem Dian, ao longo de seis anos de um projeto em que a sujidade do solo se confundia com os interesses políticos de um multimilionário.

 

Compreender Hiroxima?

Há também um geografo que tenta compreender topograficamente Hiroxima, como que a contradizer Alain Resnais, em O Geógrafo e a Ilha, da cineasta Christine Bouteiller. Phillipe Pelletier é um geógrafo francês muito conhecedor da realidade japonesa que parte de Hiroxima e Fukushima, dois desastres que rimam, para chegar a Iwaishima, uma ilha pequena em formato de coração que persiste em viver de em algum isolamento e de acordo com a sua tradição ancestral. Com as tentativas de instalação de uma central nuclear na ilha, instala-se uma luta contra a tentativa de construção de uma central nuclear. Nesse processo pesquisa os mitos agrários da região e o desequilíbrio eminente dessa sociedade insular.

 

As ovelhas chegam à cidade

Quase mitológica começa a ser a profissão de pastor, embora uma atividade abraçada por uma família holandesa que é acompanhada pelo cineasta Ton van Zantvoort no documento O Herói das Ovelhas. Foi essa família que subiu ao palco do Cine Teatro em Seia para revelar como o seu modo de vida livre no meio da natureza a criar ovelhas foi gradualmente chocando com as barreiras do modo de vida bem mais formatado da sociedade atual impreparada para lidar com um rebanho que atravessa uma pequena localidade. De tal forma, como revelaram, essa atividade acabou por ser cancelada durante um período, embora não totalmente abandonada.

 

O novo Parque Jurássico

A Impressionou-nos ainda a forma como o desenvolvimento da engenharia genética de ponta acaba por ser aplicada na tentativa de dar vida a um mamute na região siberiana. O resultado foi Genesis 2.0, uma produção suíça dirigida por Christian Frei e Maxim Arbugaev, unindo a pesquisa de caçadores nas ilhas siberianas por presas de mamutes extintos, aquilo a que chamam o ouro branco. Algo que vem sendo facilitado pelo aquecimento global que vai derretendo a camada de permafrost que vai facilitando o acesso ao marfim mas que revela uma carcaça de mamute em bom estado gerando o interesse da genética em reabilitar essa ideia de uma aproximação ao filme Parque Jurássico, de Spielberg.

 

De regresso ao cinema

Deixamos para o fim a visão muito pessoal e profundamente cinematográfica da basca Iratxe Fresneda, transmitida pela sedução das imagens e as palavras de Terras Frias, um filme de certa forma marginal nesta secção. Ainda bem. A luta pela sobrevivência da imaginação passa, entre outras coisas, pela luta contra o absolutismo do Audiovisual. Esta é a frase de abertura, da autoria do eminente cineasta Victor Erice, proferida à edição espanhola dos Cahiers du Cinéma, como que a definir o campo das imagens em movimento. Por lá andará também o pensamento de Theo Angelopoulos que funde o olhar do cineasta com a profissão das abelhas. Esta será uma deliberada não-ficção, um trabalho na franja do cinema. Pelo meio a metáfora das abelhas e da produção do mel, algo que Fresnada compara à criação cinematográfica. Vivemos através do filme, durante a rodagem, escuta-se. Nesse sentido, as gravações tornam-se um ato de amor. É a verdadeira vida. É a vida que vemos dos pastores em Navarra, transformados em refugiados climáticos, à medida que viajamos para o frio, para o sul.

Mas este vai ser um filme também é uma busca estética, entre a realidade e a ficção, mas também um filme de enquadramentos, daquilo que está dentro e fora do enquadramento perfeito, ou seja do cinema. Como as Terras Frias. Pelo meio narrativas, histórias, lendas do espaços e das terras. Enfim, o cinema.

 

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