Como abordar meio século depois um filme como Petra von Kant, um manual de sado-masoquismo, em pleno ano de 1972, considerado um clássico absoluto na obra de Rainer Werner Fassbinder? O prolifico cineasta francês optou por um respeito meticuloso do rigor do décor, do decalque narrativo e até da própria dramatização. Apenas com o flip da troca de sexos. O seja, assumir o que na altura fora usado apenas como forma velada, ou seja, a própria personalidade de Fassbinder, espelhado na personagem da designer Petra von Kant, bem como o seu romance assolapado com El Hedi Ben Salem (agora aqui como Amir Ben Salem). Tudo muito explícito, portanto. Como já fora, nesse sentido, a sua persona velada no corpo feminino.
O problema de François Ozon é o seu próprio modus operandi, em que uma vez definida a ideia tudo se desenrola com rapidez. Aliás, ele é o próprio a assumir que gosta de fazer um filme por ano. Percebeu claramente que tinha ganho a persona de Fassbinder em Denis Ménochet, bem como na espantosa funcionalidade gestual de Stefan Crepon como Karl (na exacta medida de Irm Hermann, como a gueixa dorida Marlene a quem é vedado o amor), a cumprir essa dimensão de sado-masoquismo.
Temos ainda Isabelle Adjani como uma variante de Sidonie (Katrin Schaake); temos até a decoração dessa casa habilmente a recriar aquele ano, onde não faltam sequer, os frescos que decoram o estúdio da estilista do filme agora copiado. Se bem que no original integralmente interpretado por actrizes e até coadjuvado pelos manequins feministas, apenas é contrariado pelo falo omnipresente nos frescos que dominam o cenário do da estilista Petra.
Ao invés o atelier do cineasta Peter tem suaves nuances, mesmo que não abdique totalmente da evocação do ambiente original. Só faltam as cabeleiras, como que a conferir uma variante dos diferentes estados emocionais porque que passa a manipulação, a humilhação e o delírio de Petra von Kant.
Ich liebe dich, dirá a certa altura diante de Schygulla. Que no filme deste ano a mesma atriz assume o papel da mãe que acaba insultada pelo próprio filho. Mas ficam pelo caminho outros elementos que ampliavam o cinema de Fassbinder e acabam por menorizar o cinema funcional de Ozon. Desde logo, a começar pelo envolvimento do set com os movimentos da câmara hipnóticos de Michael Ballhaus, englobando o jogo dos espelhos, a figuração humanista de todas essas naturezas humanas (vivas ou mortas?) como que prolongando e toldando a visão pelo gin e a dominação. O próprio Fassbinder aparece, no filme que acabámos de ver, logo no genérico, como que a dizer (haveria alguma dúvida?) de quem se trata. Ou na reprodução do recorte de jornal, o único momento (verdadeira cameo) em que Rainer aparece no seu filme.
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Há algo insuperável no filme de Fassbinder, quando no final as imagens da parede, como na verdade Marlene, ganham vida. Ozon serve-se do cinema, do screen test a Ben Salam. Só que essas sobras e essa luz não se comparam às figuras do papel de parede da casa de Petra von Kant, que parecem metamorfosear-se e habitar diferentes personagens. Como que a dizer, afinal não somos todas whores (putas!) Antes de se escutar a banda sonora dos Playters: Oh, yes, I’m the great pretender!