Em Decisão de Partir, vencedor do prémio de realização no último festival de Cannes, navegamos claramente entre o romance e o género policial, ou mesmo do film noir (ou será neo-nor?), embora visitada por uma certa caução referencial a Vertigo (1958) de Hitchcock e certa manipulação psicológica e visual suficientes para cativar a atenção do espectador. Gradualmente o filme evolui num novelo de neblina e obsessão, em que a tradução (ou o Lost in translation) se conforma em novo elemento de dispersão.
É verdade que o cineasta sul coreano Park Chan-wook não é propriamente desconhecido do meio cinéfilo internacional, e goza mesmo de uma credibildade autoral conferida pelo culto em redor de filmes como Oldboy – Velho Amigo (2003), Sympathy for Mr. Vengeance (2002) e Lady Vengeance (2005), conhecidos pela ‘trilogia da vingança’ e ainda Joint Security Area (2000) ou até o mais recente A Criada (2016). Filmes dominados por uma certa calma aparente, ainda que, frequentemente, cortada por cenas de violência. Ou seja, dentro do género, mas com a sua própria excentricidade.
Em Decisão de Partir, um agente da polícia (Park Hae-il) com problemas de insónia investiga a morte de um montanhista que caiu de uma ravina e onde a enigmática viuva Seo-rae (Tang Wei) constitui a principal suspeita. Aparentemente, Park tomou até como inspiração uma canção popular coreana dos anos 60, que uma velhota vai solicitando à aplicação Siri para escutar no seu smartfone. A música evoca um amor do passado, perdido no nevoeiro. Ora, neste filme, a ideia de visão, ou de visão (ou gaze) é igualmente ofuscada. Desde logo por aquele plano arrepiante, do olhar do morto embora com a percepção da formiga que passeia no seu olho, conferindo-lhe um agigantamento, ou até um deslocamento causado pela neblina.
Seja como for, ficamos com a sensação de que algo se perdeu na neblina de Decisão de Partir, ou de alguma forma essa visão foi toldada pelo ofuscamento de demasiada informação. Dito isto, entre as sombras do nevoeiro e a sensação de perda de orientação no cavalgar da narrativa e as suas idas e vindas no tempo e no espaço, há que saudar a extrema eficácia visual que, por certo, terá sido de terminante para premiar a técnica de realização, bem como de montagem que acaba por conferir algum sentido a este caleidoscópio de sensação. Portanto, em que o tema da obsessão domina. Obsessão e tensão erótica, se bem que o momento mais alto seja mesmo quando a Seo-rae usa o batón dela no agente.
Fica evidente que em Decisão de Partir é um filme dominado pelas diversas dimensões do olhar, aqui magnificamente filtradas pelo dispositivo cinematográfico. Mesmo sem ser um dos seus filmes mais palpitantes, ainda assim Decisão de Partir deixa-nos com uma sensação inapelável estranheza, suficiente para voltarmos a ele. Algo que pode ser feito nas salas e cinema ou na plataforma Filmin. E onde estarão disponíveis outros 4 filmes do cineasta.