João Canijo em dose dupla e Susana Nobre prometem muito. Num festival em que o principal cabeça de cartaz é mesmo Steven Spielberg.
O festival de Berlim aí está, revigorado após dois anos de transição e confinamento. Ainda que a 73.ª edição (que decorre de 16 a 26 do corrente mês) acorde para uma ‘nova normalidade’, depois de dois anos marcados pelo confinamento e restrições sanitárias. Neste regresso ao convívio do público e da liberdade, na expressão defendida por Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, respectivamente, directora executiva e director artístico da Berlinale, promete-se um festival assente em valores, em equilíbrio e respeito pela paridade de género.
Apesar de tudo, algumas foras as alterações. Desde logo, o cartaz oficial que substituiu o tradicional Urso, a mascote do festival, pela representação do público variado. E próprio Urso assumiu a mudança, ‘vestindo-se’ com o azul celeste e o amarelo na Ucrãnia. Até porque todo o ímpeto que move esta 73.ª edição, não se esquecem os ataques à democracia e à liberdade de expressão, nomedamente com a guerra aberta na Europa, bem como uma solidariedade estendida aos protestos contra o regime opressivo no Irão. Algo que merece a devida tradução em cinema. Desde logo, com um dos principais eventos da Berlinale, a estreia mundial de Superpower, o filme de Sean Penn (co-realizado com Aaron Kaufman) inicialmente espelhando a carreira do presidente Volodymyr Zelensky (de que é anunciada a sua presença em Berlim) embora inevitavelmente dominado por captar precisamente o momento em que as tropas de Vladimir Putin invadem a Ucrânia, fará exactamente um ano no próximo dia 24 de Fevereiro. Seguramente, só mesmo a presença de Zelensky (já confirmada) poderá ofuscar a de Steven Spielberg, a quem o festival honra com um Urso de Ouro honorário pela sua carreira. Isto numa altura em que o seu mais recente filme Os Fablemans, é um dos candidatos aos Óscares de Hollywood. Ou então, o ausente involuntário, Jafar Panahi, ainda que presente no documentário And, Towards Happy Alleys, de Sreemoyee Singh, em conversas com outros críticos do regime no Irão.
Tudo começa na próxima quinta-feira, com a comédia romântica She Came To Me, da americana Rebecca Miller, com Peter Dinklage, Marisa Tomei e Anne Hathaway. Este o título que antecede os 19 filmes concorrem ao Urso de Ouro (e restantes galardões), exaltação do cinema nas suas mais diversas fórmulas e géneros, que será avaliado pelo júri liderado pela vedeta de Hollywood Kristen Stewart, e devidamente acompanhada pela actriz iraniana Golshifteh Farahani, a realizadora espanhola Carla Simón (vencedora o ano passado com Alcarrás), a cineasta germânica Valeska Grisebach, além do cineasta romeno Radu Jude, vencedor do Urso de Ouro há dois anos, e de Johnny To, o realizador de Hong Kong, com larga história na Berlinale. E por fim, a directora de casting americana Francine Maisler.
É aí que o português João Canijo assume legítimas expectativas com o seu pungente drama feminino Mal Viver (sendo que o seu díptico Viver Mal se apresentará na secção Encounters, igualmente em competição), ombreando com os restantes filmes, onde a nota que predomina é mesmo a diversidade, de géneros entre realizadores consagrados e mais jovens. Falamos, por exemplo, de Christian Petzold, um dos mais consistentes cineastas alemães, e presença regular, na Berlinale, com a tragicomédia Afire, bem como da compatriota Margarethe von Trotta, com o filme de época Ingeborg Bachman – Journey Into the Desert, ou a coreano-canadiana Celine Song, com Past Lives ou o australiano Ivan Sem, com o promissor Limbo, cruzando questões de racismo na comunidade aborígene. Saúda-se até, entre os diversos géneros, a presença da animação, não com um, mas com dois títulos: Suzume, do consagrado autor japonês Makoto Shinkai e Art College 1994, do cineasta e pintor chinês Liu Jian.
Ainda que fora da competição, teremos a regular presença do coreano Hong Sang-soo, com a média metragem poética In Water, de apenas 60 minutos, integrando a competição do Encounters.
Uma coisa é certa, o cinema irá dominar a capital alemã, sobretudo para quem circular pela Potsdamer Platz, como nós, em redor dos principais focos de cobertura da Berlinale. Por isso, apetece mesmo recordar as palavras que J.F. Kennedy proferiu há exactamente 60 anos, em 1963, num dos principais discursos da Guerra Fria, “ich bin ein Berliner!” Neste caso, fará até sentido dizer que “somos também Ucrânia e somos também Irão!”