Paulo Portugal, em Berlim
Encontro com Susana Nobre, a propósito de Cidade Rabat, exibido no Festival de Berlim, na secção Fórum Expanded. Uma conversa possibilitada pelo espelho digital do zoom. Ainda assim para falar da ficção, ou da realidade tornada ficção.
Foi há precisamente dois anos que falámos, via Skype, sobre No Taxi do Jack, numa Berlinale confinada… Regressas este ano, novamente ao Fórum. Reconheces ser esta a melhor secção para o teu filme?
Este é um filme muito clássico. Mas também não conheço bem as características das outras secções, a sua linha de programação. Surpreendeu-me um bocado o Fórum Expanded por se tratar de um filme muito clássico. Ao contrário do Taxi que é muito mais arriscado. A diferença do Cidade Rabat em relação aos meus filmes anteriores reside no facto ser um filme de argumento. E em que o trabalho principal passa por um processo de escrita muito mais elaborado.
Na altura, falavas que este filme necessitava de ter um guião muito desenvolvido. E, por falar do guião, parece-me que Cidade Rabat é também uma história muito pessoal. É que não consegui deixar de ver na personagem da Raquel de Castro a Susana Nobre. Se calhar é intencional?
Não, não foi nada intencional. Nunca pensei a personagem da Helena das suas características por ser parecida comigo. Agora, é verdade que o filme tem realmente uma janela autobiográfica para a escrita. Parte de uma série de factos biográficos. Mas é uma espécie de pasta entre a verdade, coisas que aconteceram realmente, e outras que não aconteceram. Sendo que todo o arco narrativo é uma construção. A partir do momento em que fui para a escrita, essas coisas dissiparam-se, porque as pessoas acabaram por tomar conta do filme. E são muito mais fortes que esse plano. Nunca foi meu objectivo cumprir à letra os dados reais em que o filme se baseava. Apesar de existir um argumento, foi sempre dirigido em função daquilo que ia acontecendo na rodagem.
Ou seja, temos então um filme muito clássico, como dizes, mas ao mesmo tempo tocado também pela realidade. Algo que me pareceu estar sempre bastante presente. Não no documento, mas numa fronteira difusa. Não sei se concordas.
Concordo, como de certa forma, todo o cinema é também uma realidade. Até a literatura tem essa ligação ao real. Aliás, tanto o documentário como a ficção, que são questões difíceis de cristalizar num género. Se, por um lado, essa ideia do real está presente, é porque o cinema tem sempre uma ancoragem ao real. Não é tanto uma categoria, mas um princípio, uma matéria para o cinema. Ao mesmo tempo o real é também uma interpretação. É sempre um duelo da ordem da ficção. Estamos sempre entre estes dois contrapesos. Mas este é um filme completamente feito na lógica da ficção. Ainda que no controlo da cena; dos diálogos de uma montagem, que foi em parte feita na rodagem.
Percebe-se esse rigor muito grande no gesto de fazer o cinema. E esse controlo de estar do lado de cá e não do que acontece à frente da câmara. Isso percebe-se e é bonito. Mas ainda em relação à personagem – e estou a lembrar-me ainda da nossa conversa anterior -, recordo teres dito que ela teria de ser certa para esta papel. Nesse sentido, acho que foi mesmo a escolha ideal.
Sabes, eu não vi mais ninguém. Foi uma escolha única. Conheci a Raquel, através do assistente de realização do filme. Ela é uma actriz que tem um percurso mais ligado ao teatro. Aliás, nunca tinha feito cinema. O filme estava a aguardar o impulso para começar. Eu vi apenas um vídeo dela e achei que o meu assistente tinha razão. Gostei do facto dela ter sido enfermeira antes de ser actriz. Achei que era um bom background para fazer a personagem. Fizemos os testes de câmara e não vi mais ninguém. Devo dizer que tenho muito orgulho nisto. Até porque não gosto nada de castings anónimos. Não passa por as pessoas serem boas ou más atrizes. Eu disse: nós vamos conseguir levar isto avante. A ideia era ser uma construção e foi essa confiança que me ajudou. Não existiam certezas, apenas a confiança na presença dela.
Quando vi o filme assaltou-me uma ideia de que estava a ver uma certa representação da realidade. Não sabia bem o que querias exprimir, mas até que ponto procuravas um registo que estaria mais de fora, como que a observar a cena através da personagem. Não sei se isto faz algum sentido. No fundo, senti uma aproximação a diversos elementos que estão perto, como as pessoas da produção (por exemplo, a presença algo insólita do Ico Costa!). Ou seja, mesmo que fosse uma ficção haver alguns elementos que te são familiares.
Claro que sim. Há imensos elementos desses. Eu recorri muito pouco à figuração, convidei muitos amigos. Nesse sentido, é um filme muito familiar. É um filme no sentido daquilo que me é próximo. Aliás, acho que uso isso desde o primeiro momento em que comecei a filmar. Acho que devemos filmar aquilo que nos é familiar. É a máxima ‘bressoniana’.
Também a ideia do outro, das pessoas que desenvolvem as suas actividades. Acho que há um cuidado grande de observação e um olhar disponível para esse lado do trabalho, de que faz coisas com as mãos e que já vem até de outros filmes teus. É algo que também faz parte do teu olhar?
Acho que o cinema tem muito a ver com os rituais. Observar como alguém faz determinado gesto. Sempre que coloco uma pessoa diante da câmara há sempre uma enorme atenção sobre essa pessoa e sobre o que ela faz. Não são coisas não pensadas e orientadas pelas minhas referências do quotidiano, aquilo que observo, o meu impulso ficcional.
Se calhar, algo que tem a ver também com o facto de seres produtora.
Sim, mas eu não sou a Helena. É importante frisar. Não sou a Helena produtora, mesmo no meu trabalho com a Terratreme Filmes. Mas sei o que é o mundo da produção, ligado às burocracias do cinema. Nesse sentido sim. Mas não reproduzo nela as coisas que faço. A Helena não é um decalque.
Também nunca pensei nisso assim. Mas pensei em alguma coisa que estou a reflectir agora: uma das coisas que acho mais bonitas no filme é a parte das novas oportunidades, como a Helena aceita aquilo que a vida lhe trás. E quase com alguma curiosidade aceitar servir e ter esse papel tão interessante.
Não sei se isso está completamente explícito no filme, mas a ideia que me interessava dela ir fazer trabalho comunitário era o desejo de fazer uma coisa que não tivesse nada a fazer com aquilo que lhe era habitual. E, também, o facto de ser algo gratuito, que interessasse apenas a ela própria. Ao mesmo tempo, quando ela estava a fazer o filme, não estava conectada com aquele contexto, com as equipas de cinema. Nós percebemos que a Helena não pertence bem àquele meio, àquele bairro, na Reboleira. Quando ela volta para o bairro para fazer o trabalho comunitário, há algo nela que desperta porque é novo.
Mas, diz-me uma coisa, gostaste do filme? Porque eu também fiquei na dúvida se o filme não perderia qualidades por isso. Por ser um filme menos salvagem, menos domado. E se isso não retiraria algo ao filme…
Eu percebi que havia algo intencional de fazer um registo diferente. Mas, como disse, gostei muito do cinema e da forma como esta história de desenrola. E além de ter algumas partes duras, como a ideia da perda da mãe. Ou a sequência genial da missa em que dizes aquelas palavras que, acho, o cinema nunca mostrou. É então também esse lado do cinema que se faz. Quando falo da representação da realidade não estou trivializar. É como vamos captar algo que é banal, mas que vamos fazer da maneira boa. Com o cinema. Nesse sentido, acho que até é um filme inovador porque não precisa de estar a dizer ao que vai. Por exemplo, a pergunta óbvia sobre a rua Cidade Rabat. Era a tua rua?
A Cidade Rabat é a minha casa de origem, a casa da minha infância. Foi ali onde nasci, onde cresci. Era a minha rua. Aliás, este é um filme sobre o luto. O filme é já escrito numa fase já bastante posterior. Não é um filme escrito na tristeza do luto, mas sim numa outra dimensão. Embora tivesse aquela memória muito minuciosa de tudo o que acontece. Também me baseei de coisas de literatura, do que li. Aliás, todo o diálogo da agência funerária baseia-se em algo que li.
Falando um pouco do estado do cinema, recuperando um outro ponto da nossa conversa, sobretudo quando te referias ao investimento no cinema, sem cuidado do lado estrutural.
Eu acho que há um desequilíbrio enorme entre o dinheiro que existe, o custo das coisas e um modelo que se tende a uniformizar de produção, que é um modelo industrial, dentro de um certo sistema, horário e valores. E percebemos que hoje em dia é muito difícil desenhar um modelo diferente e que só é exequível quando há muito dinheiro. Neste momento, com a inflacção, as tabelas salariais e certos sectores de cinema são incomportáveis. Isto também devido a esta atracção do investimento estrangeiro que captou imenso trabalho em certos sectores, e em produções que não negoceiam valores. Isso tronou ainda mais difíceis as condições de trabalho sem mais financiamento. Há um certo desequilíbrio entre o dinheiro e os curos de fazer um filme. E há uma tendência em uniformizar os meios de produção. Acho que o cinema mais artesanal pode estar um pouco em risco no sentido de que o dinheiro não chega, mesmo com os apoios. Acho isto estranho.