Quarta-feira, Outubro 16, 2024
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Margarida Gil e ‘As Mãos no Fogo’: “O Buñuel é o meu vício”

Entrevista com Margarida Gil a propósito da estreia de 'Mãos no Fogo', em estreia esta semana. Uma oportunidade para procurar o real no cinema.

Margarida Gil nunca sentiu que teria de pedir licença para filmar aquilo que queria, aquilo que via através da câmara. Mãos no Fogo é, assim, um filme de risco assumido por quem deseja recentrar o olhar no cinema, em vez do audiovisual, do streamer ou algo equivalente. Bem feito.

Nesse sentido, Mãos no Fogo é um filme que procura. Algo que faz através da iniciativa da personagem de Maria do Mar (Carolina Campanela), justamente, o nome de um clássico do cinema português (ainda na fase do mudo), assinado por Leitão de Barros, e que vem sugerido em alguns planos. Desde logo, a cena erótica em que Campanela e Francisco Vistas tomam banho no rio. Campanela assume o papel de uma estudante de cinema que capta imagens para um documentário sobre o que resta dos solares minhotos, tendo em vista defender uma tese sobre o real no Cinema.

Talvez seja esta uma premissa calhada para Margarida Gil contemplar a imagem e a tentativa de captar uma certa pureza no cinema que se faz hoje em dia. Talvez não seja descabido pensar na proximidade do conto gótico de Henry James, The turn of the screw, the 1898, com o próprio cinema numa altura em que era apenas uma arte acabadinha de nascer…

Logo na cena inicial, percebe-se essa vontade de estar perto de reverências. Na cozinha, com a magnífica Adelaide Teixeira, como que revisitando o início de Relação Fiel e Verdadeira (onde Adelaide se estreou para o cinema, em 1987). Mas também pela lividez espectral das personagens que nos remete para o cinema de género – Carolina Campanela, Rita Durão, sobretudo Marcello Urgeghe, mas também Ricardo Aibéo…  

Enfim, o cinema e as pequenas surpresas que, por certo, só irão surgir numa segunda visão. E que o filme sugere. E que ajudarão a contemplar melhor todo o rigor da composição a luz desenhada e captada por Acácio de Almeida. O que já não é dizer pouco. Talvez este seja um filme que nos pisca o olho a uma certa intemporalidade, habitada por monstros e figuras do passado. E por uma certa cinefilia…

O filme foi apresentado em estreia mundial no passado festival de Berlim, na secção Encounters, e que um ano antes dera um prémio importante a MalViver/Viver Mal, de João Canijo. Altura para recordar as palavras de Margarida captadas no frio da capital alemã, agora que esta produção de Alexandre Oliveira e da Ar de Filmes estreia entre nós. 

Margarida Gil: ‘Percebo que faço uma homenagem ao Manoel de Oliveira’ (foto Paulo Portugal)

Parabéns por Mãos no Fogo (na estreia mundial no festival de Berlim). E logo numa secção dedicada a projetos mais ousados e realizadores inovadores. Talvez até pela ousadia de mostrar o cinema de uma forma mais artesanal em plena era da tecnologia digital.

Isso para mim até é um elogio, pois a minha tendência natural é para experimentar. Desde o trabalho que fazia em vídeo na televisão. Aliás, acho que nunca fiz nada igual. E este filme nem será assim tão experimental. Pelo menos, no sentido da procura de novas formas. Já o olhar sobre o cinema e a forma, a candura com que a Mar faz o trabalho, aquela coisa mais clássica e usando os meios mais clássicos, isso sim, já é experimental. 

Logo no início, na cena da cozinha, pareceu-me uma homenagem ao seu filme Relação Fiel e Verdadeira, concorda? 

Pois. Até a cozinha é muito parecida. Na verdade, o filme tem muitas coisas em comum, mas não sei bem quais são. Mas o papel que Adelaide Teixeira faz é semelhante àquele que tem Relação Fiel e Verdadeira, e que foi o primeiro papel que ela fez no cinema. Aliás a aquela cena em que persegue o peru poderia ter sido perfeitamente filmada nesse filme. Tem toda a razão. Apesar de ela odiar cozinhar (risos). Ela é feminista realista! Tentei ensinar-lhe como se corta a cenoura, mas depois não insisti. Deixei que ela fizesse como achava… (risos)

Aquela casa, as personagens e de certa forma até a ideia da narrativa parecem estar próximas do seu primeiro filme…

… sim, a ideia de pertencer a um outro tempo. 

De certa forma, isso é também o cinema, não acha?

Sim, pelo menos o grande cinema. Claro que eu percebo que aqui faço uma homenagem ao Manoel de Oliveira. Uma homenagem deliberada, já se vê. Tinha de ser. Quando fiz o meu primeiro filme, o Manoel de Oliveira estava completamente ausente, mas neste agora, não. É impossível a alguém com um mínimo de cultura cinematográfica visual não se lembrar do Manoel de Oliveira… Mas houve um período em que toda a gente me falava da presença do Manoel de Oliveira, das suas referências. Já era um bocado irritante. Depois passou a ser o João César (Monteiro). Agora neste, quero ver que raio de padrinho é que me vão arranjar. O João César é difícil… (risos)

E não haverá um pouco da Margarida Gil na Maria do Mar? Sempre à procura de imagens para a sua tese sobre o real, mais parece uma versão mais jovem da Margarida à procura da realidade das coisas para mostrar no cinema…

Sim, eu sou muito aquilo. Embora não seja assim tão naif… Posso não ter aquela candura, porque estou por trás. Aliás, acho que estou muito distribuída neste filme, em vários personagens. Mas aquela forma de acreditar, sendo restrita, e depois perdendo as suas manias. Em seguida, ir à procura da luz do sol… Eu sou um pouco aquilo. Hoje já não sou tanto, mas era assim.

Maria do Mar ou Margarida Gil à procura do real no cinema?

Diria que este filme tem algo de ‘primitivo’, no sentido da origem do cinema, pois em alguns planos parece estamos em descobrir a luz da lanterna mágica…

Pois… Sim, mas isso escapa-lhe a ela o tempo todo. Ela vai atrás, mas depois descobre que a luz já se foi. Essas coisas são brincadeiras, mas são brincadeiras sérias para explicar os sistemas feitos.

Brincadeiras com a luz que, imagino, só poderiam ser feitas pelo Acácio de Almeida…

Claro é tudo fabricado (risos). Essas brincadeiras para o Acácio são um desafio. Pode ser muito diferente filme para filme. Nós não tínhamos ideias feitas. Eu tenho muita confiança nele. Às vezes faço desenhos, às vezes faço-lhe uma aguarela. Neste caso disse-lhe que não sabia ainda muito bem. E pedi-lhe ajuda.

É isso a arte criativa.

Eu faço pintura, cerâmica e trabalho quase às escuras. Não gosto nada de saber o que é que vou fazer assim perco logo interesse. Acho mesmo um processo perigoso. Aliás, eu era sonâmbula em miúda. Há cenas neste filme que foram sonhadas. Eu estou tão habituada a isso. A curta-metragem que fiz nos Açores (Cavaleiro Vento, 2022) foi feita toda ela a partir de um sonho.

A referência ao Buñuel, que faz no filme, não é por acaso…

O Buñuel é o meu vício. É o meu cineasta. Ele e o Renoir. E o Godard, claro. Mas o Godard é diferente. Agora o Buñuel, ele é sempre. 

Já a referência ao Douglas Sirk, não estava à espera…

Sim, isso já é mais complicado, porque é um melodrama. Tal como a referência ao Leo McCarey. Isto porque ela estava já a entrar no registo que poderia ir dar ao Douglas Sirk. Claro que ele é fabuloso, mas não é o meu cineasta. E ela não pertence ao universo do Douglas Sirk. Foi isso que eu quis dizer, mas também é uma forma de a tratar mal. Porque ele está a maltratá-la. Ele (Marcello Urgeghe) é uma personagem sinistra.

É curioso como a ideia de tempo está totalmente elidida. Com se não existisse, ou não fosse identificável.

Completamente. Como na Relação Fiel e Verdadeira. Eu não quis. Aí há uma referência ao 25 de Abril, mas é quase um anacronismo. Aqui é algo muito acentuado – não quero marcar o tempo. 

Se calhar, tem a ver também com o próprio cinema…

Acho que era importante neste tipo de universo. Para já, aquele sítio é mesmo fora do tempo. E aquela zona vive fora da história do tempo. Aquela casa está preservada há 400 anos. E é única. O turismo não lhe tocou. Aquela cozinha é assim há 400 anos. Quanto estamos em Ponte de Lima é óbvio que aquilo é agora. Mas é um ‘agora’ quando? E para quê? 

E agora, imagino que está com expectativa de que o filme chegue ao seu público?

Eu tenho. Deve ser meu lado Carolina (Campanela), o meu lado ‘Maria do Mar’. Eu sou sempre bastante esperançosa, mas neste caso particularmente. Posso enganar-me redondamente, mas tenho imensa confiança neste filme. Se calhar, com outros filmes não valeria a pena ter confiança, mas neste tenho. 

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