O dia 11 de Setembro antes do dia 11 de Setembro. Se essa data, em 2001, poderá ser considerada como um outro ‘dia da infâmia’ (o ‘outro’ fora baptizado no dia do bombardeamento japonês a Pearl Harbor), a verdade é que mais de duas décadas antes, a democracia recebia um duro golpe com a violenta tomada do poder no Chile pelo ditador Augusto Pinochet, derrubando o governo socialista de Salvador Allende, depois de goradas as tentativas manipulação política. Passaram agora precisamente 50 anos.
A efeméride é recordada com o magnífico registo de A Batalha do Chile, um documentário de autêntico cinema verité, com nada menos que 264 minutos, dividido em três partes, agora digitalizado e restaurado em 2K. Encará-lo na sua unidade é olhar para um marco absoluto e inestimável na história no cinema documental. Na primeira parte, assiste-se a A Insurreição da Burguesia, um segmento apenas lançado em 1975, acompanhando como a burguesia chinela reagiu aos primeiros anos de governo de esquerda, sempre com a visão de Guzmán a sentir o pulsação do momento; seguiu-se O Golpe de Estado, só disponibilizado em 1977, dando conta da manobra militar de ataque ao palácio La Moneda, pelas forças chinelas (devidamente apoiadas pela Casa Branca); finalmente, a terceira parte, O Poder Popular, apenas editado em 79, acompanhando os diversos segmentos das massas na rua.
Ao descobrir esta Batalha (ou revê-la, se for o caso), é como se regressássemos aquele ‘aqui e agora’ que foram os tempos conturbados da muito jovem democracia chilena, seguramente inspiradores até para a substituição de poder, embora em sentido contrário, que se realizaria em Portugal menos de seis meses depois.
E o que é que se vê de novo nesta versão digital? Pois bem, além da imagem muito mais limpa, com acertos dos diversos tons de cinzento, percebe-se o trabalho fundamental na estabilização da imagem, bem como a fundamental melhoria no áudio tornando todos os diálogos mais nítidos e eliminadas os indesejáveis elementos anómalos e de distorção. No fundo, condições necessárias para uma fruição que nos aproxima muito mais do tempo em que as imagens foram recolhidas e depois divulgadas.
Mas há diversos outros elementos que fazem deste registo um objeto incontornável de um cinema de resistência. Desde logo, a opção abertamente marxista em captar e mostrar a realidade, tal como ela é. Nesse sentido, Patricio Guzmán foi o cineasta certo no lugar certo. Ele soube soube usar o equipamento, mas também a palavra para documentar o que se passava. Ao ver hoje Guzmán questionar ambas da fações antagónicas do povo chileno nas ruas, em vésperas das eleições conturbadas que haveriam de confirmar Allende, interpelando de forma muito rápida e direta os cidadãos sobre as suas preferências políticas, é difícil deixar de pensar em Glauber Rocha, nas ruas naquele dia 25 de Abril, no documento plural que é As Armas e o Povo. Sendo que não haveria forma do cineasta brasileiro conhecer o filme do colega chileno, pois ‘A Batalha’ apenas passaria no festival de Cannes no ano seguinte (justamente ao lado de Jeanne Dielman, da Chantal Akerman, hoje considerado como o filme mais relevante do mundo), ambos exibidos na secção paralela Quinzena dos Realizadores. Por uma mera curiosidade, valerá a pena referir que a Palma de Ouro, da Selecção Oficial, presidida por Jeanne Moreau, seria atribuída ao filme argelino Chronicle os the Years of Fire, de Mohammed Lakhdar-Hamina, num segmento que incluía também Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni.
A concretização deste projeto acabou por ser a articulação feliz de uma singular conjuntura. Patricio estudara cinema em Madrid, uma vez que não possuia meios para o fazer no Chile, acabando por regressar a Santiago em 1971. E já com diversas ideias de um cinema necessariamente politizado. É aí que realiza o seu documentário El primer año (1972), acompanhando as mudanças do primeiro ano da presidência de Allende. Conhece, entretanto, o cineasta francês Chris Marker a quem mostra o seu filme, acabando mesmo por o exibir em França e outros países. Aliás, Marker será decisivo para a concretização de La Batalla del Chili, ao oferecer a Guzmán um caixote enorme com película e negativo suficiente para 45 horas de filmagem.
Assim seguimos o acompanhamento do levantamento popular, em defesa das políticas progressistas do presidente chileno recém eleito, Salvador Allende; mas ao mesmo tempo, a contra-corrente da classe média e das manobras políticas no sentido de as contrariar, numa última fase com o apoio da CIA e do governo de Richard Nixon, culminando no ataque militar ao palácio La Moneda, em 11 de Setembro de 1973, e na morte de Allende.
Depois desta excelente oportunidade para rever ou descobrir o cinema de Patricio Guzmán, apetece dizer que há algo na sua extrema delicadeza de trato que perpassa para as imagens. Mesmo quando se trata do registo mais forte de cinema-ação, o original La batalha de Chile, cresce entre as palavras de ordem nas ruas, as manifestações, os comícios, as perguntas directas às pessoas na rua, o cuidado e o rigor dos enquadramentos. Com relevância no momento impressionante em que a câmara do repórter Leonardo Henriksen capta olhos nos olhos a sua própria morte, na cena arrepiaste que abre a 2ª parte de A Batalha do Chile – O Golpe de Estado.
Ainda hoje, mesmo com um material alvo de várias montagens diversas, sente-se peso (e a responsabilidade) do cinema de propaganda e acontecimentos políticos absolutamente marcantes. E que seguramente ganham uma rima inesperada e que merece ser visto em face do filme colectivo português do cinema de urgência nas ruas concretizado em As Armas e o Povo (1975).