Quinta-feira, Dezembro 5, 2024
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Moretti reflete o passado olhando para ‘O Sol do Futuro’

Temos Moretti! Talvez no seu melhor. O cineasta que nos habituou a um certo tom reflexivo, e até mesmo autobiográfico, leva essa dimensão ainda mais longe em O Sol do Futuro, o seu último filme, em exibição partir desta semana nas salas (e não na Netflix!, como o próprio poderia acrescentar). Aliás, convenhamos, a beliscadela ao streaming faz mesmo parte desta fita que pode muito bem ser considerada como um verdadeiro ato de resistência de Nanni Moretti. Sobretudo pela não resignação a um cinema que passa cada vez mais pela imposição estética de novos pipelines de consumo audiovisual.

Mas será mesmo este o melhor Moretti? Provavelmente, sim. Até porque nos proporciona um valente banho de cinema que funde de forma sábia o sentido de humor com uma expressa vontade artística e até uma via política que não enjeita a ilusão. Acima de tudo, reavivando uma enorme coerência com toda a sua filmografia. Visto de uma certa forma, O Sol do Futuro permite até ser encarado como aquele filme que concretiza todos os seus (nossos!) sonhos.

Por falar em sonhos, faz sentido recuperar Sonhos de Ouro, um Moretti de 1981, algo esquecido, mas talvez aquele que mantém com este uma filiação mais forte. Centra-se no universo de um cineasta incompreendido e empenhado em concretizar uma ópera sobre Freud. Embora com diversos elementos agora desenvolvidos – uma espécie de ‘sol de ouro’ ou até, porque não, um ‘sonho de futuro’? É claro que serão aqui chamados outros projetos onde se sente a possibilidade de um filme musical irromper a qualquer instante. Nem que seja sobre ‘um padeiro trotskista na Itália dos anos 50’, como referido em Caro Diário, realizado há precisamente 30 anos, embora Palombella Rosa possa igualmente ser aqui evocado.

É então esta filiação que ilumina este O Sol do Futuro, encarado quase como uma utopia teimosa na crença de um certo cinema, sem deixar de contemplar uma certa fé no espetador. É que mais do que em qualquer outro filme seu, Moretti massaja aqui o seu voluntarismo criador pela personagem do regresso do cineasta Giovanni. Seja quando este corrige o inesperado par Silvio Orlando e Barbora Bobulova, no casal de atores diante de o improviso em assumirem uma putativa relação amorosa; ou quando vai ao extremo de recortar a imagem de Stalin num cartaz como forma de protesto contra a Rússia soviética que se distancia dos valores do ‘seu’ PCI. Seja como for, a cena mais expressiva será mesmo aquela em que Giovanni se intromete na rodagem de um jovem cineasta prestes a filmar uma cena de execução – de certa forma, a cena WTF, ou seja, What The Fuck, como sugerem os produtores –  abortando dessa forma o climax do final do seu projeto cinematográfico. É aí que Giovanni/Moretti introduz sub-repticiamente o mais forte elemento meta, ao questioná-lo diretamente sobre a utilidade dessa cena. E é por aí que chegará ao ‘efeito Netflix’… Mesmo indiferente aos argumentos do jovem que invoca Shakespeare e até a filosofia grega. Não se coibirá até a ripostar com o gesto pedante de ligar a Martin Scorsese como forma de ‘executar’ a confiança do cineasta.

Moretti com os ‘seus’ (Foto Midas Filmes)

É claro que há muito Fellini por aqui, desde 8 ½ a Amarcord. Desde logo nas dúvidas de mise-en-scène em plena rodagem, bem como pela ‘recordação’ de envolver as personagens de um circo húngaro que chega à cidade no momento em que os tanques soviéticos fazem abortar a revolução húngara em 1956.

Pelo meio, as nuvens negras de um divórcio anunciado por Paola (Margherita Buy) a um marido demasiado narcisista e controlador, ou os problemas com um produtor francês demasiado otimista (Mathieu Almaric) ou até a possibilidade de trabalho com uns muito compreensivos produtores coreanos. Há ainda elementos de ordem cósmica, como o ritual de arrastar a família a ver Lola, de Jacques Demy, antes de iniciar um novo filme, como que a reconectar-se com o passado, bem como os seus filmes. Ainda que ao mesmo tempo, sugira ao espetador um olhar de proximidade. Ou seja, sentir aquilo que é particular ao (bom) cinema – a magia ou a emoção. Talvez até (e porque não?) inspirado num cinema de autor dos anos 60, próximo de Pasolini, Bertolucci, Demy, mas também Polanski e até de Chaplin. Leia-se um cinema que se interrogava e tentava mudar o próprio cinema e até a sociedade. Sim é também isso tudo, O Sol do Futuro.

 

Paulo Portugal
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