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Assassinos da Lua das Flores: Di Caprio vs. De Niro em neo-western de Scorsese

Nas salas IMAX antes da Apple TV

Sim, “Maio é a época em que a lua mata as flores”. E é isso que lemos logo no primeiro parágrafo do best seller de David Grann, Assassinos da Lua das Flores, um good read imediato (aliás, gentilmente oferecido pela editora Quetzal no visionamento de imprensa). A obra agora adaptada ao cinema por Martin Scoresese, em colaboração com o habitual Eric Roth, concretizara o seu eterno desejo de fazer um western. E em que o subtítulo ‘A matança dos índios Osage e o nascimento do FBI’ funciona como adequada descrição sobre o que se passa nos 206 minutos de fita (cerca de 3h30), apenas quatro minutos menos que o anterior O Irlandês

É assim entre violetas, beldroegas e centáureas (as ’flores’ mencionadas do título e descritas do livro) que nos é servido este épico tête a tête entre DiCaprio e De Niro, devidamente acompanhado pelos piores defeitos do homem branco, como a ganância, o racismo e violência bruta. E que poderá ser visto, a partir do dia 19 de Outubro, num IMAX perto de si; seguindo depois para o streaming, em muitos casos, uma sala ainda mais perto de si, provavelmente, em formato de mini-série, como sucedeu com O Irlandês. E acompanhado pela chancela da gigante Apple (que terá assegurado os 200 milhões da produção), embora com o acordo de distribuição da Paramount.

O processo foi igualmente longo, e seria mesmo Leonardo DiCaprio a assegurar os direitos do manuscrito, como informam as notas de produção do filme, antes mesmo da publicação em livro, em 2016. E lançou a proposta ao amigo Marty que logo terá vislumbrado na sua mente o big picture. Ainda assim, antes desse novo encontro, Leo participaria em Era uma Vez em Hollywood, sob a direção de Tarantino, tal como Scorsese deveria terminar a montagem de O Silêncio (2016) e até de produzir O Irlandês (2019). E até, para que se conste, só depois de Roth terminar a adaptação da sequela de Dune, para Denis Villeneuve (2001). 

Mas voltemos aos Osage, a comunidade índia que remonta ao século XVII e que acabaria por se instalar no Midwest, fundando em 1907 o estado de Oklahoma, onde haveriam de decorrer, entre as décadas de 1910 e 1930, os assassínios de dezenas de índios abastados e proprietários de terras abençoadas, no período que ficou conhecido como o “reino do terror”.

Apesar do filme escapar à obra prima, são incríveis as primeiras sequências que nos revelam a realidade da nação índia Osage. Sobretudo o seu breve momento de vida abastada, intocado pelo cinema, depois da descoberta de petróleo nas suas terras. Isto por volta de 1896, um ano depois dos irmãos Lumière mostrarem a sua invenção do cinema. Pena que esta história incrível tenha sido ignorada e remetida para um mero fragmento de referência enciclopédica. Bem andou David Grann, jornalista de investigação da prestigiada revista New Yorker, perito em histórias obscuras, ao iluminar este episódio digno de figurar nos mais incríveis contos do velho Oeste. Aliás, um trabalho na linha do obscuro The Lost City of Z, igualmente escrito por Gann, em 2009, e adaptado ao cinema por James Gray, em 2016. 

O filme começa mesmo com uma pose para a fotografia. Aí vemos as famílias Osage orgulhosas, ostentando mantos adornados por joias, diante de mansões luxuosas, servidos até por criados brancos, ou exibindo-se ao volante de modernos automóveis. Isto nesses primeiros anos da década de 1920, precisamente, durante o início da actividade do FBI, quando os Osage foram considerados “a nação mais rica do mundo”. Antes da cobiça dos caras pálidas comprovarem a informação do subtítulo do filme. Naturalmente, there will be blood a manchar este retrato demasiado prosaico da realidade do ‘ouro negro’ daqueles tempos. 

Facilmente se percebe que Scorsese seria o homem indicado para abordar semelhante tema. Fundindo a verdade histórica com o mundo da maldade daqueles que se serviram dela para fazer crescer a nação (branca) americana. Alias, quem desfrutar da experiência do cinema dispensando uma informação complementar (como foi o nosso caso), poderá sentir que esta singularidade histórica funciona como se o cineasta exibisse uma realidade alternativa. Aliás, uma sequência igualmente insólita (ainda que numa dimensão completamente distinta) veremos a personagem de DiCaprio, Ernest Burkhart, um oportunista à procura de fama e fortuna, com problemas dentários e de intestinos, a ser copiosamente açoitada no traseiro com uma tábua, diante do tio William Hale, com quem veio viver. Dir-se-ia até que este exemplar corretivo evocaria o primeiro encontro deste duo de atores, há precisamente 30 anos atrás, no filme A Vida Deste Rapaz, de Michael Caton-Jones. Embora seja oportuno referir que estes dois rostos mais habitués no cinema de Scorsese nunca antes haviam sigo captados em conjunto pela lente do mestre novaiorquino.

Como se imagina, este será, de novo, um De Niro de dimensão imperial. E que irá sugerir ao sobrinho, no seu estilo falsamente manso: “podes tratar-me por tio, ou por king”. Isto antes de lhe introduzir a verdadeira intenção. Pois o alvo da cobiça maliciosa de King Hale será a aproximação aos direitos de propriedade das terras dos índios e as respetivas riquezas, os chamados ‘headrights’. Só que estes direitos hereditários, colocavam alguns problemas aos seus proprietários, uma vez que os índios foram, convenientemente, considerados ‘incompetentes’ para a sua assinatura, só a podendo executar recorrendo a um guardião de cara pálida. 

É aí que se escancara a porta aos marialvas e caçadores de fortunas, como Ernest Burkhart, regressado como veterano da Primeira Guerra Mundial que aterra na região dos campos de petróleo para se juntar a William ‘King’ Hale, um latifundiário local, embora, hélas, as suas terras sejam limpas de petróleo e apenas calhadas para a criação de gado. Ao sobrinho irá sugerir a corte à índia Mollie, numa prestação justíssima de Lily Gladstone (a mais justa nomeação aos prémios do cinema do final do ano). Antes dela própria ser visada pelas teias e intrigas de Hale e Burkhart.

De Rei do gado, Hale passará a ser conhecido pelo ‘o reino do terror’, pela forma siblina como foi introduzindo no sobrinho a mesquinhez de se acercar da possibilidade da herança desses direitos. É precisamente essa dúvida que fará com que o aparente amor que tenha pela mulher seja temperado por uma certa ambiguidade de fundo negro, de resto, reforçada pelas doses de insulina, com veneno, para combater a sua diabetes.

Scorsese vai gerindo com um cinema suave toda esta narrativa, este longo lamento, em que a dimensão temporal, entretanto mais próxima da tal investigação policial, carece de um tratamento que apazigue-se a dimensão temporal. Dir-se-ia, um Scorsese já conformado com um look entre a tela grande e a pequena. Ainda assim, a discreta mas absorvente banda sonora de Robbie Robertson, vai-se-nos instalando debaixo da pele, como que a deixar ferver a ação em lume brando. Já a montagem habitual de Thelma Shoonmaker vai articulando a ação que passa, ainda que sem gestos de cinema que nos fiquem na memória. Mesmo quando os dotes interpretativos estarão focados em DiCaprio, que se deixa invadir por uma expressão facial cada vez mais contorcida, até um ’boneco’ de dimensão hiper-expressiva. Compensado até pela intervenção muito mais sóbria de De Niro. Pelo menos, do que a sua notável galeria de ‘monstros’.

Será até no final que Martin Scorsese nos reserva uma saborosa surpresa feel good, ao ensaiar este assombroso conto dentro da dramatização de espetáculo radiofónico, plena de efeitos sonoros, devidamente patrocinado por uma marca de tabaco, narrado como se fosse um história de true crime. Uma opção que acaba por funcionar, quanto mais não seja, para sublinhar a dimensão mais inacreditável deste fragmento histórico, com o detalhe inédito do próprio realizador a aparecer numa inesperada cameo a dirigir essa dramatização final . Finalmente, Marty tem o seu western. Pelo menos, o seu neo-western.

Paulo Portugal
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