Porto/Post/Doc: Astrakan 79 e Naquele Dia em Lisboa – o cinema expandido

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Astrakan 79

Astrakan 79 é um dos grandes filmes portugueses do ano que pode ser visto no Porto/Post/Doc, na secção Cinema Falado. Aí se nota uma incessante procura de identidade inerente ao cinema de Catarina Mourão. Desde logo pela forma como usa a realidade e o arquivo pessoal de família. Como o fez, aliás, com assinalável brilhantismo em A Toca do Lobo, filme de 2015. No fundo, a memória como um palimpsesto.

O filme abre com um belíssimo e sereno plano que nos introduz num apartamento vazio e despido em obras. Seguimos, como um feitiço, a melodia que sai de um oboé tocado por um jovem. É o Mateus. Cuja nuca se fundirá numa mais grisalha. A do Martim, o protagonista da história, o pai do Mateus.

Este até podia ser um filme sobre idealismos perdidos, mas não é. Será talvez mais sobre as diferentes camadas do passado. No caso, as memórias da juventude de Martim, um rapaz que cresceu com as manifs do 25 de Abril e do 1 de Maio, e que acaba por aceitar uma bolsa de estudo em Astrakan, para onde viaja em 1979, por incentivo dos pais, militantes comunistas, de modo a testemunhar o nascimento de uma nova sociedade. Aliás, uma decisão empurrada logo após o atentado bombista que destruiu o carro dos pais. Mesmo com muitas dúvidas e hesitações, próprias de um rapaz prestes a ir em busca de uma quimera aos 15 anos. O tom é confessional e oferecido pelos postais ilustrados, o verdadeiro guião condutor da história.

Catarina Mourão viajou também até à Rússia para documentar esta viagem e encontrar um reccord fílmico entre o passado e o presente. E estabelecer uma ponte muito ténue entre os relatos e uma composição de memória. O tom que vai subindo para algo mais sério, à medida que a narrativa revela a nova vida na Rússia, os novos conhecimentos na residência, a descoberta do romance. E das surpresas que isso trás. Enfim, o turbilhão da vida. No final, num registo quase comovente, oferece o contra-campo do pai, Martim, aos 57 anos, artista que trabalha com barro, com o filho Mateus, músico. “Sabes que tenho muitas ideias de esquerda, mas não sou comunista”, dirá em tom confessional, quase como justificação.

Mas o final feliz é perceber como Catarina Mourão filmou tudo com um cuidado e carinho pela história. Sempre fiel ao documento dos postais que, invariavelmente, Martim escrevia: “Queridos pais e irmão…” Isto à medida em que essa experiência de vida o fazia crescer depressa demais. É no apartamento vazio que essa história aos quadradinhos de postais se refaz numa performance final.

Naquele dia em Lisboa

Naquele Dia em Lisboa, de Daniel Blaufuks.

O fotógrafo e cineasta Daniel Blaufuks olhou as fotografias do germânico Eugen Schüfftan, tiradas em 1940, em Lisboa. Ele, um experiente diretor de fotografia que trabalhou com os grandes, desde Fritz Lang, Abel Gance, Robert Sodmak, Max Ophüls ou Georg Wilhelm Pabst, Georges Franju, entre outros.

Nos rolos que nos deixou capta-se a multidão nas ruas em redor da baixa lisboeta. Grande parte deles, refugiados aguardando o seu visto para abandonar a Europa de Hitler em direção aos Estados Unidos. No fundo, tratando o tema que seria abordado dois anos mais tarde, por Michael Curtiz no clássico Casablanca.

Em Naquele Dia em Lisboa vivemos um tempo desacelerado a que a voz de Bruno Ganz nos remete a um tempo que faz fundir o passado atualizando com aqueles que hoje fogem por motivos idênticos ou mesmo piores. É esse o efeito produzido pela ‘fotografia expandida’ captada observando esses milhares de rostos que encaram a câmara (e nos olham a nós) nos passeio demasiado cheio de gente.

Em pouco mais de 20 minutos passeamos pelo Rossio, Chiado e zona da Baixa, em fotografia e cor e preto e branco, apenas acompanhadas por um piano lento que parece marcar o ritmo do próprio tempo e aquietar a ansiedade. É por isso também que este é um filme que nos faz parar. E pensar.

Sessões

Astrakan:

18 Nov 2023 · Batalha Centro de Cinema – Sala 1 · 19H00

24 Nov 2023 · Batalha Centro de Cinema – Sala 1 · 19H00

Naquele Dia em Lisboa:

18 Nov 2023 · Batalha Centro de Cinema – Sala 1 · 19H00

24 Nov 2023 · Batalha Centro de Cinema – Sala 1 · 19H00