Felizmente, temos o cinema de Agnieszka Holland. Que nos confronta com a questão do ‘eles’ e o ‘nós’, ou seja, dos refugiados e dos que concedem abrigo. Aos 75 anos, a corajosa cineasta abandona a zona de conforto para elevar, sem tabus, o olhar do cinema num documento guerilla, ainda que complementado por alguma liberdade narrativa. Ela que soube confrontar-nos com o desconforto diante dos limites do inaceitável, como em Europa, Europa (1990), uma história verídica, onde um jovem judeu na Alemanha nazi se junta à juventude hitleriana como única forma de escapar ao seu destino. É, de novo, o inaceitável que nos coloca diante dos paradoxos da nossa humanidade.
Neste registo sombrio visitado pelo desespero percebemos igualmente uma relação próxima do desencontro de identidade a aflorar o avassalador Green Border – Zona de Exclusão, esta semana a chegar às salas e a enquadrar a expressão ‘crise humanitária’ numa curiosa ‘zona de interesse’. No caso, colocando o dedo na ferida que divide o ‘nós’ e os ‘eles’, aqueles do lado de cá da desejada União Europeia, estando do outro os que se refugiam da guerra, dos totalitarismos, embora não completamente das formas alternativas de segregação e racismo. Quer cheguem a entrar ou não. O filme segue um estilo de mosaico em que se cruzam momentos diversos dos destinos de refugiados, mas também dos guardas de fronteira, de alguns ativistas e das suas famílias. Só que esse aparente registo de viagem logo tropeça num confronto geopolítico, inter-regional e social que por certo envergonhará uma Polónia populista a ceder ao discurso divisor do apelo das massas, mas que nos demonstra igualmente as fragilidades europeias, ao mesmo tempo que oferece outras pistas para abordar o lugar onde nos posicionamos.
Zona de Exclusão foi apresentado a concurso no passado festival de Veneza, onde conquistou o Prémio Especial do Júri, pouco antes de ser revelado aos polacos e receber de volta o ódio expresso da forma mais violenta por parte do seu governo de extrema-direita. Reação talvez não totalmente deslocada de um pensamento nas eleições legislativas, a realizar apenas daí a semanas. Apesar de tudo com um resultado menos catastrófico que já se sabe.
Ainda durante o genérico, um plano aéreo de uma floresta verde vai cedendo a tons de cinzento, no movimento de chegada de uma família de refugiados sírios (com familiares que os esperam na Suécia) a Minsk, aos quais se junta uma afegã tradutora de inglês com intenção de asilo na Polónia. Contudo, uma vez na Bielorrússia, este grupo passará a ser uma arma de arremesso entre a fronteira da Bielorrússia e da Polónia – na tal zona de exclusão ou a terra de ninguém -, onde cada uma das nações parece lavar as suas mãos, empurrando os refugiados entre cenas de atrocidades que nos abstemos de relatar.
De referir que a cineasta e a sua equipa de dois argumentistas (Gabriela Lazarkiewicz-Sieczko e Maciej Pisuk) partiram para o terreno em setembro de 2021, numa altura em que o presidente bielorrusso Alexander Lukashenko foi ‘solidário’ ao convidar refugiados a usar o seu país como rota de acesso à Europa e a um suposto asilo que depressa se transformou numa ‘crise na fronteira’. Por aqui se desenha parte de um guião feito de centenas de horas de análise de documentos e entrevistas com refugiados, residentes próximos da fronteira, bem como depoimentos anónimos de guardas fronteiriços. “Tudo o que acontece no filme é documentado; nada é inventado”, refere a cineasta nas notas de produção, mesmo que tenha tomado alguma liberdade no desenho das personagens, para as afastar do mero documento.Devido a entraves de produção, o filme acabaria por ser rodado apenas entre abril e maio, já deste ano. E filmado a preto e branco, como forma de sublinhar uma ligação “metafórica com o passado, próximo da 2ª Guerra Mundial”.
Ao ver estas imagens em diferentes tons de cinzento e negro, algumas delas de um realismo cruel, é difícil não evocar a memória reprimida de Noite e Nevoeiro, de Resnais (1955) e como uma alegoria da indignação pode assumir formas diferentes. Talvez fosse o arame farpado, talvez fossem os guardas indiferentes ao horror, talvez a noite e o nevoeiro que parece toldar a visão de muitos e olhar para o lado. Mas a esse respeito falará um Jonathan Glazer e o seu tremendo Zona de Interesse. Mas que ilustra bem a radiografia (assim mesmo, sem cor) do mapa das idiossincrasias por que passam os refugiados, mas que afetam também aqueles que os acolhem. E como não há perguntas inocentes a formular, deixa-se a interrogação num epílogo final em estilo rap, em que polacos e refugiados africanos cantam o tema morrer mil vezes: “já perdi tanta gente, sinto que estou a morrer mil vezes”.