A Flor do Buriti: a vida e o cinema como ato de resistência

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A realidade da comunidade krahô já é partilhada nas salas de cinema no deslumbrante filme A Flor do Buriti, de Renée Nader Messora e João Salaviza. Isto já depois de receber o prémio de interpretação coletiva na secção paralela Un Certain Regard do Festival de Cannes, entretanto prolongado por uma carreira fulgurante (e multipremiada) em diversos festivais internacionais. Esta é também uma entrega que supera o igualmente belíssimo e tocante, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de 2018, igualmente premiado em Cannes.

Durante quinze meses, a equipa embrenhou-se em quatro aldeias da comunidade krahô, concretizando uma espécie de genealogia krahô, encarada como um imenso ritual, onde elementos documentais se articulam com a narrativa, música e cânticos, deixando fluir a vida de um povo que enfrenta constantemente ameaças à sua existência. Aliás, os próprios krahô participaram em diferentes etapas da sua construção.

Por aqui se funda a articulação do seu povo numa reflexão permanente entre o passado e a ligação à terra da Krahôlandia, em Pedra Branca, no estado brasileiro de Tocantins. Aliás, a palavra Buriti representa a ‘árvore da vida’, uma espécie rica em vitaminas e aplicações medicinais. Talvez por isso, a forma de celebrar o ‘ato de resistência’ deste povo seja rodeado pelo nascimento, pela renovação da vida. Pois mais do que um cinema que se faz vivendo, este é um cinema que se vive filmando. Algo ligado até na vida do casal e da sua filha, Mira, de seis anos, inevitavel e intimamente, ligada a estes dois filmes.

A história estrutura-se em redor de Francisco Hyjinõ Krahõ, Luzia Cruwakwyj e a decisão de Patpro em fazer com que as vozes ancestrais do povo indígena sejam ouvidas. Daí nasce a decisão de participar numa conferência em Brasília destinada a chamar a atenção para as necessidades das comunidades indígenas em todo o Brasil. Durante a rodagem (em película de 16mm, aliás, como o anterior) foram registados desafios oferecidos pela própria realidade, como a pandemia do Bolsonarismo, a desflorestação da floresta Amazónia, o agro-negócio, as pilhagens de animais, a propagação do vírus covid… Enfim.

É através dos olhos da filha de Patpro que assistimos à recriação do trauma do massacre ocorrido em 1940, bem como ao impacto da ditadura militar na década de 1960, numa medida que nos dá a resiliência do seu povo, a ligação a ritos ancestrais numa ligação entre o passado com o presente, o colonialismo e a ganância do capitalismo atual. É esta a ameaça ‘cupé’, na expressão designada para descrever o homem branco, colonizador e usurpador, que é aqui evocada e que motiva a reivindicação do seu direito à existência.

Em 1980, o cineasta Jean Rouch declarou numa entrevista que “Fazer um filme significa, para mim, escrever com os olhos, com os ouvidos, com o corpo”. É precisamente esta ‘escrita da imagem’ através dos sentidos que se aplica de uma forma muito harmoniosa ao deslumbrante filme de João Salaviza e Renée Nader Messora. Pois este convida-nos a essa ligação com a terra e, através das comunidades indígenas, a essa ligação de autêntica cosmogonia. Porque esta história nunca acaba.