Albert Serra e Tardes de Soledad

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Andrés Roca Rey em ação na arena (Tardes de Soledad)

“Este é o único filme possível e é um filme de cinema”

Depois de Pacification (2022), Albert Serra, provavelmente, o cineasta espanhol mais interessante da atualidade, lança-se na arriscada, mas inteiramente conseguida, abordagem dos touros e das touradas. Tardes de Soledad, o filme merecedor da Concha de Ouro, na 72ª edição do Festival de San Sebastian, será mesmo o oposto de ‘pacífico’, pois o cineasta catalão de 47 anos empurra o espetador, literalmente, para o centro da arena, para um confronto sangrento e de uma certa indignidade, entre o matador e a sua presa. 

Pela primeira vez na sua carreira de dezoito anos, Serra aborda o documentário, trazendo um ponto de vista inédito do toureiro e da festa, convocando mesmo algo de invisível ao espetáculo. A ideia terá partido de um amigo que dirigia um mestrado em documentário na Universidade Popular de Barcelona, como confessou o cineasta durante um encontro com a imprensa em San Sebastian, justificando que “na altura não tinha um tema documental que me interessasse”. Embora tenha ganho interesse em abordar um tema “que me é próximo e um pouco extremo que é essa coisa dos touros, sobretudo com recurso ao digital.” É essa opção estética que nos permite um fuco absoluto com o que se passa na arena, elidindo todo o resto, como o espetáculo das bancadas. 

Numa altura em que o debate sobre as corridas de touros está mais vivo que nunca, Serra introduz um certo mistério e, mesmo, alguma transcendência, deixando ao espetador o espaço para definir o que será beleza ou brutalidade. O filme abre precisamente com um prolongado frente a frente, entre toiro e toureiro, mas também entre o espetador, pois são os olhos do touro que nos fitam também. 

Tardes de Soledad

Ao longo das duas horas do filme, cria-se um espaço que tanto é de beleza, como também de algum gozo, no meio da brutalidade, mas também das coreografias, das lentejoulas e dos enfeites, em que o pulsar do coração de ambos se funde num documento único. E será até essa imagem, esse gaze, que irá prevalecer até ao final, mesmo depois do toureiro peruano Andrés Roca Rey ter tirado a vida a vários touros no exercício do seu papel de matador. Neste plano, Serra mostra-se distante em relação à vida interior do toureiro, centrando-se sobretudo nos momentos de descarga de adrenalina, que irão chocar com o stress do touro na arena.

É na ‘solidão’ de homem e besta que se opera uma tremenda troca de emoções que superam até os cambiantes de pontos de vista que se tenham sobre este espetáculo controverso. Algo que foi possível com recurso a três câmaras e microfones de som sem fios, aproximando o confronto do homem e do animal. “Émuito difícil filmar touradas”, confessou o realizador, “há muito movimento, o foco é difícil, é tudo imprevisível. Portanto, é uma aprendizagem.”

Será até nestes momentos de reflexão, mistério e solidão que sobressai a ideia destas ‘tardes de solidão’. Como se a solidão do touro fosse também a do toureiro, e do grupo de o acompanha, pois, como assume “é na carrinha fechada, no quarto do hotel, na praça também fechada, sem público que se sente parte dessa solidão, dessa introspeção.”

Albert Serra confiou na liberdade de cada operador pesquisar e selecionar o interesse de cada plano. “Trabalhavam de forma independente. No entanto não servíamos nenhuma causa. No final de cada corrida, conversávamos, tentando melhorar”, referiu o catalão. Isto nos três ambientes privilegiados pelo filme. A saber: as arenas (que não estão identificadas) onde Andrés Roca Rey faz a sua performance; o espaço fechado da carrinha que o leva, bem como a sua entourage, no final tarde; por fim, o quarto de hotel, onde se veste e prepara para cada corrida.

Segundo explicou, o objetivo terá sido “buscar com a câmara coisas que não podiam ser vistas pelo olho humano ou escutadas sem ser por microfones sem fios que podiam ser usados durante 5 horas”. Em todo o caso, a metodologia de trabalho era “idêntica à maioria dos filmes de ficção, funcionando com três câmaras e total autonomia, tipo micro-rede. Algo que acabou por ser uma aprendizagem.”

Qual o significado que se pode retirar de uma certa brutalidade das imagens? Mesmo que estas pertençam a um espetáculo visto pela televisão. Serra sublinha que “o filme não se posiciona num debate pró ou contra as touradas, destacando a bravura do toureiro, mas também o sofrimento do touro.” Aliás, ele assume que se posiciona “dentro de um certo apreço pelas touradas,” embora defenda a honestidade de todos os elementos, principalmente os visualmente mais interessantes, mostrando toda a sua expressividade. Incluindo até um certo sentido de humor e ironia, a par do fascínio muito macho pelo protagonista e um compromisso com o espetáculo.

Apesar de tudo, o filme não se abre mão do objeto de arte e com “elementos próprios que não estão a serviço de causas. Estão ao serviço do cinema, e é isso que fica no final. Senti que tinha de fazer um filme, torná-lo coerente e internamente consistente. Este é o único filme possível e é um filme de cinema. Não tem nenhuma outra consideração. Nunca tive isso em nenhum dos meus filmes. Não vou começar agora.”