Na Trafaria – o cinema como um corpo vivo

O filme-ensaio criado em ambiente académico (por estudantes FCSH) e coordenado pelo realizador e docente Pedro Florêncio, foi exibido na secção de competição nacional do DocLisboa.

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Na Trafaria

Encarar o cinema como um corpo vivo. Algo feito de imagens criadas em meio académico, moldáveis pela montagem e adaptadas (e repensadas) a cada diferente projeção. Assim se poderá descrever Na Trafaria, o fascinante projeto académico coordenado pelo realizador e docente Pedro Florêncio. Este filme-ensaio, pois não se trata tanto de um filme, mas de captação de imagens, sequências dos quotidianos laborais da localidade, foi desenvolvido em ambiente académico que foi exibido na secção competitiva nacional do DocLisboa, oferecendo uma proposta moldável, aplicada ao mapeamento de um território e irremediavelmente ligada à junção criteriosa de segmentos de imagem e som. Ou seja, a unidades de espaço e o tempo, como diria o filósofo Gilles Deleuze. Ou seja, ao cinema.

Quis o mero acaso que este filme encontrasse um estudo muito próximo, ainda que longínquo, embora a permitir a mesma reflexão das imagens num meio académico (ou escolar). Falamos de Filmstunde. 23/Subject Filmmaking, de Edgar Reitz, um dos nomes de proa da nova vaga do cinema alemão, nos anos 60, juntamente com Alexander Kluge, também visto no contexto do DocLisboa. Uma felicíssima coincidência, a permitir a comunhão do ensino do cinema com a visão do mundo. No caso de Reitz, a partir do seu filme de estudo, Filmstunde, de 1968, e de uma aula de cinema para adolescentes, revisitada 50 anos depois pelos ex-alunos que reavaliam esse material em conjunto. 

Se um dos propósitos de um festival de cinema, como o DocLisboa, será apresentar propostas para suscitar reflexões, então este filme do docente na FCSH, e da sua equipa de estudantes do Departamento de Ciências da Comunicação dessa instituição (como João Leiria, Tiago Ferreira Marques e Diogo Rodrigues), será muito mais do que a sua mera singularidade. De certa forma, um espaço de cinema e modo de o pensar que se aproxima do trabalho de Reitz. Mas isso seria uma nova e diferente abordagem. Em particular, pela sua natureza de “estudo cinematográfico de natureza teórico-prática, que propõe o mapeamento alternativo de um território, utilizando o cinema como ferramenta cartográfica”, como propôs Florêncio na apresentação do filme no Cinema São Jorge. 

Talvez seja necessário explicar que Na Trafaria surge associado ao projeto europeu T-Factor, uma iniciativa académica e participativa com origem na NOVA – FCSH, e cujas origens tinham como base a transformação do Antigo Presídio da Trafaria no Instituto de Artes e Tecnologias da NOVA. A ideia partida da ponderação do espaço urbano, mas também fabril (e tudo à volta) como hipótese de regeneração urbana, económica, cultural e que começou pelo desafio lançado por João Mário Grilo, académico o igualmente cineasta com larguíssima carreira na FCSH.

Pedro Florêncio, no São Jorge, com parte da sua equipa.

Nesse contexto, acrescenta-se a possibilidade de repensar o cinema. Algo que incorpora uma metodologia própria de mapear esse território, contemplando a sua própria incompletude, como motor de questionamento.  Em suma, uma ideia tremenda de cinema enquanto ferramenta educativa. E por aqui fica (quase) tudo dito. Ou talvez não. Talvez faça sentido acrescentar que o filme ganhou já a sua própria maturidade, pelo percurso de mais de uma dezena de projeções, em espaços simbólicos da Trafaria, sendo que cada sessão era projetada uma versão renovada da montagem.

Acredita-se que antes das imagens que ‘fazem’ Na Trafaria estarão porventura diversas perguntas que ocorrem em redor de uma mesa de montagem ou um programa de edição, porventura questionando: o que filmar e porquê? Onde colocar a câmara e porquê? Quando parar de filmar e porquê? 

Durante a apresentação no filme no São Jorge, na segunda passagem do DocLisboa, Florêncio sublinhou essa preocupação quanto à decisão de parar de filmar, desde logo pela ligação afetiva com o lugar.” Acrescentando uma ideia forte em que “parece que há uma traição em sair de lá com o filme e ir embora,” indagando, por exemplo, a hipótese de continuar a trabalhar com a comunidade. Percebe-se bem essa ligação natural ao cinema observacional de Frederik Wiseman (de resto, esse tema do ‘esculpir o espaço’ que serviu de tema ao doutoramento de Pedro Florêncio, mas também de Jean Rouch.

São os camiões que carregam e descarregam mercadorias, os homens que afivelam as capas de proteção dos contentores, os momentos de deslocação no transporte fluvial que liga a capital àquele pedaço de terra de sol, escondida entre os montes e o rio que desagua no mar; espaços de busca de vistas e passados. São estes os elementos que moldam o projeto, bem como as diferentes versões do filme – no fundo, “os possíveis filmes que daí resultam”, como refere o cineasta e académico.

A abordagem à realidade e espaço da Trafaria foi encarada como uma espécie de residência artística, como o próprio cineasta reconheceu, sob o lema, “vamos filmar como quem estuda”, nesse confronto com o real, retirando as diversas conclusões possíveis, mesmo que não necessariamente relacionadas com a construção de uma obra. No fundo, “um mapa cinematográfico, mais do que implicar uma imagem fixa de um território visto de cima”, implicando que “um mapa cinematográfico pode ter montagem, pode ligar um ponto A a um ponto Z, através de uma ligação imprevisível e inusitada. Esse tipo de ideias interessa-nos imenso. Sobretudo, como forma de nunca sentir que estávamos condicionados de fazer um filme final.” É por isso que o cineasta assume que ” não há um filme, mas antes versões desse filme.” 

Antes da projeção ficou até o convite (ou provocação?) de estarmos livres para sair da sala e voltar a entrar no filme outra vez. É essa a ideia de ‘ginásio’, ou seja, da continuidade prática da reflexão na sala de aula. E porque feito (e sobretudo pensado) com diversas mãos (e cabeças). E depois a continuidade dessa prática, como atividade em si mesma, ficando essas projeções (únicas!) como o momento do encontro a sério com a realidade, o embate com uma sala de público. Mesmo que essa não seja necessariamente o momento mais importante. E ainda bem. 

Não será essa a ‘outra’ Trafaria, aquela de que fala o poeta António Gedeão, no seu poema ‘Para Além da Trafaria’, no treco poético que antecipa o filme? A tal Trafaria desamarrada de uma certa realidade? Ou de uma realidade que se repete, pelo erro, ou, simplesmente, por que sim. Como a pequena ‘deixa’, um plano simbólico de um funcionário que varre o chão do transporte fluvial que é repetido por três vezes, como que a reenquadrar o real,

Pois não valerá a pena questionar o que está “para além da Trafaria”, muito mais interessante será entretermo-nos a olhar para o rio e para as serras. Até porque o que está Na Trafaria já parece estar para além do real.