Terça-feira, Março 11, 2025
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‘Timestamp’: o futuro e a vida escolar na Ucrânia após três anos de guerra

No dia em que se comemoram três anos da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, evoca-se o valioso documentário de Kateryna Gornostai, a cineasta ucraniana de 35 anos que que trouxe à Berlinale o único exemplo de cinema a concurso para o Urso de Ouro, apesar de não conquistar qualquer prémio. Timestamp não poderia ser mais oportuno, pois deixa essa ‘marca no tempo’, por sinal, apontando a câmara ao futuro, ou seja, à vida nas escolas durante o tempo de guerra e ao valor da educação como a pedra de toque e a base da civilização. Seguramente, um valioso gesto moral que fala volumes sobre a teimosia da humanidade no meio da selvajaria bélica.

Por falar em História, há precisamente 83 anos, em 1942, aquele ‘annus horribilis’ que haveria de coincidir com a entrada dos EUA na guerra, o filme Mrs Miniver, de William Wyler, sobre uma “uma mulher comum que leva uma vida comum – muito parecida com a sua”, recebia o elogio rasgado de Winston Churchil. Referia ele que essa história equivalia a ‘uma frota de destroyers’ no esforço de guerra. O filme viria a ser o maior sucesso desse ano e vencedor de seis Óscares (incluindo melhor filme, realizador e atores). 

A comparação justifica-se, pois sente-se no filme de Gornostai esse olhar sereno sobre quem está atrás da linha da frente, recusando qualquer forma de narrativa em “voz off” ou “talking heads”. Apenas são indicadas legendas com nomes das cidades – que agora reconhecemos de serem mencionadas em blocos de comentário político sobre a guerra – e a sua distância para a linha da frente. Voltando a Chuchill, o que haverá de “mais comum” que a vida escolar do primeiro e segundo ciclos, mesmo quando a guerra já faz parte da vidas de crianças em idade escolar? Fora dela, sentia-se apenas a guerra nas suas consequências, seja na destruição dos edifícios civis e escolares, ou quando soavam os alarmes de potenciais ataques aéreos, ou nos regulares minutos de silêncio. 

Ao longo destes 125 minutos observacionais, com imagens captadas entre março de 2023 e junho de 2024, espelham-se as rotinas escolares que decorrem ao longo de um ano letivo, com um final em que acaba por simbolizar a assimilação desse ciclo de aprendizagem, devidamente adaptado a essa realidade. E onde se sente até algum otimismo, não só, pelo entusiasmo observado pelas diferentes faixas etárias, mesmo quando adolescentes já preparados para uma potencial intervenção em combate, seja por aulas de tiro, ou em cuidados de primeiros socorros. Ainda que um dos segmentos mais intensos seja uma aula de arte, em que o docente estimula a perceção das crianças para as formas, cores e visão de conjunto dos seus trabalhos. 

Não deixa de ser curioso, como este documentário acaba por convocar a memória do igualmente ignorado Ari, de Léonor Serraille, sobre os desafios de auto-redescoberta de um professor de pré-primária, mas sobretudo pelo relevo que dá à espontaneidade indomável das crianças. Mas é pena que num festival que sempre pugnou pela afirmação de valores, mesmo afirmando uma vincada marca política, seja ignorado o único filme (dos 19 da competição oficial) que abordava a realidade do mundo em que o continente europeu vive 80 anos após o final da mais devastadora guerra do século e da criação da Carta das nações Unidas. 

Timestamp centrou-nos a atenção naquilo que é realmente importante. E, pode dizer-se até, legitimamente, poderia ter sido vencedor do Urso de Ouro, não obstante o ter sido programado para o último dia (ou talvez mesmo para evitar um eventual desgaste). Sejamos claros, a solução encontrada (Dreams) deixa no ar um sentimento de uma solução de compromisso. 

Só se poderá compreender esta distância, em sinal de algum desgaste em relação a anos anteriores. Sobretudo na edição de 2023, em grande parte dominada por diversas produções ucranianas (ou em co-produção) focando-se no conflito. Desde logo, por Superpower, de Sean Penn, em 2023, espelhando a carreira de Volodymyr Zelensky, ou a visão do cineasta ucraniano Vitaly Mansky (em Eastern Front) – ele que regressou este ano com o filme de três horas Time to the Target, exibido na secção Fórum -, ou ainda W Ukraine, de Piotr Pawlus e Tomasz Wolski, mas também Iron Butterflies, de Roman LiubyIt’s a Date, de Nadia ParfanWe Will Not Fade Away, de Alisa KovalenkoWalking UpIn Silente, de Mila Zhlutewnko e Daniel Asadi Faezi.

Apesar de ter sido ignorado pelo júri da Berlinale 75, acreditamos que Timestamp deixará a sua marca e poderá mesmo servir de referência para outros casos, em que à barbárie, ao conflito (e até mesmo ao populismo) não há melhor resposta do que o conhecimento e a formação. Será mesmo o melhor ‘carimbo do tempo’. Um carimbo que Keteryna Gornostai (tal com o companheiro, o editor do filme, Nikon Romanchenko) levará para sempre consigo, pois deu à luz um bebé em pleno festival.

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