Quinta-feira, Junho 5, 2025
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Tardes de Solidão: diálogo entre a besta e o bestial

O catalão Albert Serra impõe em "Tardes de Solidão" um cinema puro e observacional, em que a 'soledad' entre toiro e matador se prolonga em nós como o delírio de um voyeur diante a barbárie.

Este é um filme olho no olho. Grandioso. Penetra-nos a dimensão do olhar da vedeta, o matador peruano Andrés Roca Rey, que visa o do monstro bovino, autêntica locomotiva a quem se entrega numa orgulhosa dança, aliada a um certo desdém contemplativo, mesmo quando o olhar do toiro se embranquece e esvai. E há ainda um terceiro olhar – o nosso que nos centra ao longo das duas horas de filme, nesse majestoso close up que encerra matador, toiro e nós na arena. O outro público, o das bancadas, também lá estará, embora elidido (ignorado mesmo!) por uma mise-en-scène claustrofóbica, intencionalmente focada na captação de uma intimidade primordial. De um lado a besta, do outro o bestial. Claro, o filme também é bestial.

A proposta de Albert Serra é, como quase sempre no seu cinema, seduzir-nos e manter-nos presos a uma proposta irresistivelmente sensorial. O efeito é totalmente conseguido. Goste-se (ou desgoste-se) da festa brava. Ainda que o sucessor de Pacification esteja além desse jogo ‘político’, do espetáculo bárbaro e démodé, do arrivismo macho da lantejoula, da bajulação à vedeta e da derradeira despedida ao toiro simbolizado pelo espetar do punhal no cérebro do animal, num culminar brutal da fiesta brava. Penso até que Tardes de Solidão se situa muito além de um qualquer gosto (ou desgosto!) pela tauromaquia (onde, naturalmente, nos inscrevemos). A questão que aqui mais importa é mesmo o cinema! Pois nesse domínio, olé! Mas vamos por partes.

Digamos que existe uma metodologia em redor de Tarde de Solidão. E que será a de captar a maior proximidade entre o homem e o animal, entra a eminência de um confronto brutal, quase sempre ludibriado pela arte e elegância da dança do torero. A mestria de Serra está precisamente em recortar do evento apenas o essencial – o namoro fatal entre o toureiro e toiro. Para o efeito isolou o espaço com três câmaras usadas por operadores com autonomia para filmar, mas com a particularidade de nunca poderem ser vistas; por outro, dotou o espaço da ação com microfones sem fios, para que fosse possível sentir (e isso é ‘ver’ e ‘ouvir’) a respiração ofegante do touro e do toureiro e, quem sabe até, sentir a nossa e pensar o que vai lá dentro – o isso não é coisa pouca. Em suma, Serra criou uma mini-rede, como se estivesse num filme de ação, deixando que a câmara ofereça elementos não captados pelo olho humano ou escutados sem ser por microfones sem fios.

‘Tardes de Solidão’, de Albert Serra. O cinema a olhar a morte de frente.

Albert Serra é, seguramente, um dos cineastas europeus mais interessantes da atualidade. E que consegue, como poucos (algum?!) expor-nos a uma certa novidade, a camadas de sensualidade ainda não trilhadas, a um tempo imperturbável do cinema que, irremediavelmente, nos perturba. Mesmo quando usa um certo lado barroco e histórico. Em todo o caso, há uma coerência na sua obra. Desde a provocação quixotesca de Honra de Cavalaria (2006), a decadência de História da Minha Morte (2013), passando naturalmente pela mitologia A Morte de Luís XIV (2016), pelo imperial jogo de sedução Liberté (2019) e, claro, a culminar no ambiente surreal de Pacification (2022). Digamos que Tardes de Soledad, o filme totalmente merecedor da Concha de Ouro, na 72ª edição do Festival de San Sebastian, será mesmo o oposto de ‘pacífico’, pois o cineasta catalão de 50 anos empurra o espetador, literalmente, para o centro da arena, para um encontro sangrento e, até, de uma certa indignidade, entre o matador e a sua presa. 

Pela primeira vez na sua carreira de vinte anos, Serra aborda o documentário, trazendo um ponto de vista inédito do toureiro e da festa, convocando mesmo algo de invisível ao espetáculo. A ideia terá partido de um amigo que dirigia um mestrado em documentário na Universidade Popular de Barcelona, justificando que, na altura, não tinha um tema de documentário que o interessasse. Pois o interesse na temática extrema dos touros, cresceu com a possibilidade do recurso ao cinema digital, facilitando esse foco absoluto com tudo o que se passa na arena, eliminando todo o resto, como o espetáculo das bancadas. 

Numa altura em que o debate sobre as touradas está mais vivo que nunca, Serra introduz um certo mistério e, mesmo, alguma transcendência, deixando ao espetador o espaço para definir o que será beleza ou brutalidade. E será até esse gaze que irá prevalecer até ao final, em que Roca Rey se entrega à mais profunda dimensão de interioridade do toureiro. É então na ‘solidão’ deste homem e da besta que se opera a tremenda troca de emoções que supera até o ponto de vista sobre este espetáculo controverso e brutal. Mas essa é também a solidão do toureiro fora do seu ambiente. Pois ele está só, mesmo que acompanhado pela sua entourage, reduzida à a missão de colocar a vedeta num pedestal, ou no hotel, entregue ao ritual daquele que o despe e veste, que limpa o sangue do fato. Ou a solidão do público que necessita deste encontro de adrenalina para sair da letargia.

Dito isto, importará esclarecer que o filme se posiciona para além do questionamento sobre o valor da causa da tauromaquia. Percebe-se que o filme está ao serviço do cinema. É o que nos devolve a tremenda coerência das imagens ao longo deste genial diálogo entre a besta e o bestial.

Tardes de Solidão
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