“O Il Cinema Ritrovato é um bom exemplo de festival de cultura anti-I.A.”
Antes de mais, dizer que este programador, curador e realizador iraniano tem uma forte ligação ao nosso país. Aliás, este encontro (via Zoom) foi sugerido, ainda em Lisboa, na Cinemateca Portuguesa, quando Ehsan apresentava vários filmes de Anatole Litvak, um cineasta alvo de uma retrospetiva no ano anterior em Bolonha. Depois será a hora de regressar a Locarno, em agosto, para a curadoria do ciclo British Postwar Cinema 1945-1960, um ano depois de ali apresentar um showcase do centenário da Columbia Pictures.

Gostaria de começar por pela sua trajetória de cinéfilo. De que forma sente que ela foi decisiva na sua evolução como programador no Cinema Ritrovato?
Digamos que eu faço isto desde os sete ou oito anos. É que eu costumava mostrar filmes às minhas irmãs mais novas. Eu era o responsável pelo programa. Talvez porque fosse mais velho e, claramente, porque tinha mais interesse em cinema. Mas elas eram as companheiras perfeitas e, por isso, todas as noites, selecionava um filme e assistíamos juntos. Basicamente, foi aí que tudo começou, evoluindo para o desejo de mostrar filmes a outras pessoas, de partilhar aquilo de que gostava com os outros. O que acabou por se manifestar na criação de clubes de cinema e sociedades de amigos, evoluindo até se tornar numa profissão.
Imagino que tenha estado muito ocupado, nas últimas semanas, a preparar a retrospetiva do Lewis Milestone…
Não foi fácil, porque ele produzia filmes de forma independente e lançava-os, por exemplo, através da United Artists. Por causa disso, muitos desses filmes estão em detentores de direitos diferentes. Digamos que os filmes não são facilmente acessíveis. Alguns dos seus filmes mais famosos foram produzidos por Howard Hughes, antes de ele se tornar uma figura consolidada em Hollywood. Hughes financiou Lewis Milestone para fazer filmes como The Racket/A Lei dos Fortes (1928). Muitos desses filmes estavam dispersos e demorou algum tempo a juntar tudo.
Mas há também, naturalmente, os filmes dos grandes estúdios…
Claro, há também filmes produzidos por grandes estúdios, como a 20th Century Fox, a Warner Brothers. A questão é que, ao mostrar filmes de um realizador que nunca foi alvo de uma retrospetiva, começa-se do zero, porque ninguém fez essa pesquisa. Se fosse sobre Alan Dwan, era mais fácil, porque foi feito numa escala menor – mesmo que não tão completa como a que foi feita em Lisboa. Assim, é mais fácil seguir a carreira dos filmes. Mas esta é a primeira vez, e é justamente por ser a primeira vez.

Como encara este realizador em 2025, dado o seu percurso e a sua longa carreira?
A razão pela qual vejo o Milestone como uma figura relevante para o público de 2025 é, antes de mais, por me permitir continuar o tema de realizadores emigrantes que vieram do centro e leste da Europa para Hollywood e por lá trabalharam. Mas também por ter uma carreira que liga o cinema mudo ao final dos anos 50, ao advento das ideias modernistas no cinema. Além disso, foi vítima da Lista Negra em Hollywood. Desde logo, por ter tratado de algumas questões-chave do seu tempo, e que, infelizmente, se tornaram também questões importantes do nosso tempo — nomeadamente, a guerra, sendo um mestre dos filmes de guerra.
All Quiet of the Western Front/A Oeste Nada de Novo (1930) é um enorme filme pacifista…
É. E o Lewis Milestone é conhecido como o maior cineasta anti-guerra. Mas, se olharmos bem, percebemos que nem sempre foi um cineasta anti-guerra. Há filmes que são tipicamente filmes de guerra, filmes que acreditam no valor da luta. Ele não era só um pacifista. Acredito que o tema da guerra, do deslocamento e também algumas das suas ideias de esquerda presentes nos filmes dos anos 30, como Hallelujah, I’m a Bum/O Vagabundo (1933), são muito relevantes numa sociedade marcada por uma maior violência e injustiça. E que vemos hoje em diversas partes do mundo. Acho que tudo isto pode despertar algo positivo no público de hoje.
Espero até que em novos públicos. Acha que, e numa perspetiva mais ampla, o Il Cinema Ritrovato tem no seu centro a urgência de captar um público mais jovem? E, se sim, como faria isso?
Não chamar-lhe-ia urgência, porque, uma vez mais, tudo acontece de forma orgânica. Há interesse, e por isso, todos aqueles que vêm a Bolonha, são pessoas interessadas – pessoas como, talvez, você e eu -, que decidiram contornar a vida limitada, quase prisional, de um cinéfilo comum, para algo mais coletivo, para descobrir coisas. Porque muitos destes jovens, não conhecem o cânone de todo. Simplesmente seguem o fluxo do festival. Alguns podem até nunca ter visto um filme do Preston Sturges, ou mesmo do Orson Welles. Mas, de repente, acabam por assistir a 10 filmes do Lewis Milestone ou do Hugo Fregonese. É bastante notável e gosto muito disso. Porque já não se trata do cânone, pois não se sabe o que aquela pessoa já viu. Trata-se apenas de bons filmes. Por isso, a minha questão é muito simples: é um bom filme ou não? Essa é a questão. Mas esses filmes são bons. E acho que qualquer pessoa com algum nível de curiosidade pelo cinema gostaria de os (re)descobrir.
Descobri também o seu filme, Celluloid Underground, no LEFFEST, há dois anos. Sente que esta é uma continuação do seu percurso, numa recuperação do passado do cinema iraniano?
Eu queria fazer um filme sobre Ahmad (Jorghanian), o colecionador de filmes, mas acabei por se transformar num filme sobre o Ahmad e eu, a nossa amizade e o nosso trabalho. Sobre a cultura cinematográfica antes da revolução, do seu ponto de vista, e sobre a cultura cinematográfica após a revolução, do meu ponto de vista. Fez sentido fazer um filme sobre isso porque tinha muita película desse tempo.

Participa no livro Travels in the Cities of Cinema, do Jonathan Rosenbaum, onde conversa com ele. E que também é um amigo do festival. Já estive com ele em Lisboa e Bolonha. Poderemos dizer que, de certa forma, é uma variante diferentes de ‘Celluloid Undergorund’?
Sim(risos). Mas é, sobretudo, um livro sobre o Jonathan. Não sobre mim. Apesar de ter mencionado algumas histórias pessoais, foi apenas para o encorajar a falar e a recordar as coisas que eu queria ouvir. Mas, é verdade, é outra espécie de Celluloid Underground, porque é uma forma de interação com alguém que partilha a mesma paixão. E que desperta algo de forma positiva. Com o Jonathan, abordamos desde a cadeia de cinemas, no Alabama, até ao tema que você aborda na sua tese, que é a cinefilia na era digital.
Sim, com efeito. Sente com a disponibilidade massiva de filmes que temos agora, em que tudo (ou quase) está disponível, de que forma acha que isso pode alterar a cinefilia? Poderá trazer mais pessoas para o cinema? Ou resultar também numa apreciação cada vez mais superficial?
Depende da abordagem de cada pessoa. Pode ter ambos os resultados: tornar as pessoas mais indecisas. Você usou a palavra certa — superficial -, ficando apenas pela superfície das coisas, saltando de um filme para o outro, sem absorver realmente… O binge-watching de cinema já é um problema. É uma questão de ritmo, de quanto é que conseguimos digerir. Com esta disponibilidade, é preciso tempo para digerir as imagens e foco para transformar todas essas experiências em algo coerente. No entanto, isso está a tornar-se cada vez mais difícil, dado o fluxo de possibilidades tecnológicas. E agora, com a IA, torna-se ainda mais evidente.
Era exatamente isso que ia perguntar. Como vê a questão da IA nesta matéria?
As pessoas têm muito medo da IA. Mas acho que é muito interessante, porque, a partir de agora, será muito mais fácil distinguir se um texto foi escrito por IA, portanto, algo completamente sem alma. Basta ler o segundo parágrafo, cheio de generalizações geradas pelo algoritmo. A partir de agora, tudo se resume às pessoas que têm uma voz e às que se deixam controlar pelos desejos e caprichos da máquina.
Trazendo este tema para o contexto do Il Cinema Ritrovato, onde acha que essa curiosidade pode chegar, como dizia? E qual seria o papel de um festival como este?
Acho que o Il Cinema Ritrovato é um bom exemplo do tipo de cultura anti-IA. Uma cultura que é real, física, que acontece num espaço físico, com pessoas reais, com filmes reais, projetados numa sala de cinema, para que todos os encontros sejam tangíveis e reais. E acho que devemos valorizar isso ainda mais do que antes. Mas há muitos outros bons festivais deste género. Mas há filmes que ganham uma vida nova de forma inesperada. Provavelmente, até nem teria vontade de verem filme como Singing in the Rain, mas, se acabar vê-lo em Bolonha, pode ter um significado completamente diferente.
Sem dúvida. Isso aconteceu-me com Nanook of the North/Nanuk o Esquimó (1922), um filme que conheço muito bem. Mas a experiência de ver o filme numa projecção de carbono na Piazza Pierpaolo Pasolini foi totalmente nova e será uma memória que nunca vou esquecer.
Claro. Curiosamente, eu tive recentemente uma experiência semelhante com esse filme, em Lisboa. Na Cinemateca iam projetar o filme de manhã, como costuma acontecer para testar as cópias. Acabei por ver o filme sozinho na sala grande da Cinemateca. Foi uma experiência diferente para mim. Muito melhor do que assistir em casa. Mas não é a mesma coisa que ver na Piazza Pasolini, com outras pessoas, projetado com uma projecção de luz de carbono. A diferença é que há um piscar de luz, porque, pela própria natureza da luz, vê-se o piscar, enquanto numa projecção moderna de 35mm, esse efeito não se vê de todo.
Eu senti até o cheiro vindo do projetor de carbono…
Sim, exatamente. São níveis diferentes de lidar com o lado mais táctil do cinema. Mas não são as únicas coisas, porque o significado do filme não muda consoante o que vemos no computador, na televisão, na Piazza Pasolini ou na Cinemateca. O significado do filme é sempre o mesmo.
Também precisamos falar sobre a Cineteca, sobre o trabalho que está a ser feito e todas as maravilhas que também vemos no festival: as projeções me película, os novos restauros novos, em DCP. Como é que navega enquanto programador, curator, nesta materialidade do cinema: filme, digital, os diferentes projetores…?
Está a falar sobre os formatos, certo?
Exatamente.

Bem, eu sou uma pessoa de cinema, por isso, sempre que há um filme disponível, prefiro o filme. E devemos exibir filmes em película, porque, daqui a cerca de 20 anos, provavelmente, já não poderemos mostrar muitos desses filmes. Primeiro, porque as cópias estão a envelhecer; segundo, porque as instituições estão cada vez mais relutantes em permitir as projeções. Além disso, esses filmes tornam-se raros. Como não estão a fazer novas cópias, ficam mais protetores. Penso que podemos chegar a um ponto em que será extremamente difícil exibir filmes em película. Por isso, estou a tentar exibir o maior número de cópias possível.
Como vê a cinefilia, para onde acha que ela está a caminhar? E, especialmente, que mensagem deixaria aos novos cinéfilos que estão a entrar nesta área e a apreciar o cinema? Dar-lhes-ia algum conselho particular?
Um conselho? Olhe, usem cadernos. E tirem notas. Essa é a minha sugestão. Comprem um caderno e usem-no. Tenho muitos aqui. Isto é só para mostrar um. São alguns esboços sobre o Lewis Milestone. Gosto de fazer desenhos dos cenários. E, sabe, é bom para organizar a mente e o seu processo de pensamento. Acho que devia-se evitar o computador o mais possível. E, acredito, isso mudaria a qualidade da vida cinéfila.

Para terminar, como é a sua colaboração com o Gianluca Farinelli? É fácil trabalhar com ele? Pode também ter a sua opinião na programação e fazer as suas sugestões?
Eu sinto uma liberdade sem dúvidas nem condições. Simplesmente, liberdade. Ele confia em mim, e eu também confio no gosto e no conhecimento dele. Ou seja, é um match made in heaven.
Muito obrigado pelo seu tempo. Até breve, em Bolonha.