Antes de mais, um aviso à navegação: seguir um festival como o Lumière Lyon — apenas em metade do seu tempo —, percorrendo as diversas retrospetivas, sugere, no mínimo, uma disponibilidade digestiva para ver 4, 5 (até mesmo meia dúzia!) de filmes.
Algo que merece compreensão, face à opção de não conseguir acompanhar, como desejaria, a retrospetiva dedicada à arte do ator Louis Jouvet, do palco para o cinema, embora aqui concentrada nas suas obras-primas do ecrã (Les Bas-fonds, de Jean Renoir; Un Revenant, de Christian-Jacque; ou Quais des Orfèvres, de Henri-Georges Clouzot, entre várias outras); seja a urgência do cinema da norueguesa Anja Breien (e a oportunidade de ver Le Viol, Wives ou a sua sequela Wives, dix ans après — no título francês), ou até a atenção merecida à obra do nipónico Seijum Suzuki, mestre da série B japonesa. Enfim.
Apesar de tudo, recuperando alguns dos ‘grandes clássicos’ — como o restauro impecável dos 30 anos de Quarto com Vista Sobre a Cidade, do americano James Ivory, ou dos quarenta anos de Voando Sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman, ou ainda O Clã dos Sicilianos” (1969), de Henri Verneuil, que vimos no fecho da aventura ‘lyonesa’.
Acrescenta-se ainda a emoção e o brilho de Sacha Guitry, no prodigioso exercício de teatro em cinema que é Deburau (1951), um imenso tributo à sua arte de representação, bem entrelaçado por uma mise en scèneirrepreensível, onde a ligação entre pai e filho (claro, a sua e a do seu pai) é igualmente homenageada. Chega?! Claro que não!
Detenhamo-nos então diante do profundo e coerente realismo de Konrad Wolf, um dos mais destacados realizadores da Alemanha de Leste, também ele um cineasta profundamente engajado (como Martin Ritt). Infelizmente, o cinema de Wolf não tem o reconhecimento que merece — isto apesar da mini-retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou em maio passado, salvo erro, com três filmes, sendo um deles o avassalador Estrelas (1959) — já lá vamos.
Nascido na Alemanha em 1925 (estamos, portanto, no seu centenário), Wolf irá dirigir cerca de quinze filmes entre 1955 e 1980, dos quais cinco foram exibidos em Lyon. Filho de uma família judaico-comunista, mudou-se para Moscovo em 1933 para escapar aos nazis, regressando à sua terra natal em 1945, já alistado como soldado do Exército Vermelho. Aliás, este episódio tornar-se-ia no tema do seu filme autobiográfico, Eu Tinha 19 Anos (na tradução portuguesa).

A vida de Wolf foi marcada por uma dupla identidade: soviética e da RDA (República Democrática Alemã). Ele, que acabaria por trabalhar para a DEFA, o primeiro estúdio e centro de produção público do pós-guerra (logo em 1946, e que durou até 1991), funcionando como o braço cinematográfico do governo da Alemanha de Leste.
Em Moscovo, em 1949, estudou cinema na famosa VGIK, onde lecionaram nomes grandes do cinema russo, como Lev Kuleshov, Marlen Khutsiev ou Sergei Eisenstein, entre outros. Em Berlim Oriental, durante a década de 1950, tornou-se diretor de obras cujo tema principal era a Alemanha e as suas complexidades, explorando como sentimentos como o amor, a traição e a melancolia conduzem a uma consciência política profunda.
O resultado da sua formação acabou por estar refletido nos seus filmes. Apesar de retratar a sua época com um olhar crítico, sempre demonstrando carinho pelas suas personagens femininas. É o caso de Lissy (1957), o seu primeiro filme, sobre uma jovem que enfrenta a ascensão do nazismo na década de 1930. Wolf cria um forte contraste visual entre a pobreza das classes trabalhadoras e a riqueza burguesa, embora o coração do filme seja, exatamente, Lissy, uma alemã comum e não uma heroína clássica, apenas preocupada em viver.
O filme mostra como, naqueles anos 30, havia uma tendência popular, um fascínio até mesmo da classe média pela ideologia fascista. Ora essa, essa é a questão central que Konrad Wolf tentará responder nestes anos 50, mesmo que fosse um tema que muitos tentavam esquecer. Mas a questão que fica é: como é que os nazis conseguiram conquistar o coração e a mente do povo? Na verdade, é um dilema que se mostra cada vez mais atual do que se possa imaginar.

A atenção à dimensão feminina estará igualmente presente em Sterne”/“Estrelas (1959), uma pequena obra-prima humanista sob a forma de um poderoso filme anti-guerra, que arrisca uma pequena homenagem romântica. Esta produção vinda do outro lado do Muro de Berlim, vencedora do Prémio Especial do Júri em Cannes, é marcada por uma fotografia crua e uma iluminação rigorosa, quase teatral, com os rostos marcados pelo destino, num realismo que nos faz recordar Noite e Nevoeiro, de Alain Resnais, produzido apenas três anos antes.
Aliás, logo na cena de abertura, é a verdade que Wolf capta, digamos de uma forma quase arquivista, com a sua câmara a abrir-se à atmosfera opressiva do comboio com destino a Auschwitz, aquele lugar onde lhes disseram que iriam plantar legumes… Nesse grupo sobressai o rosto de Ruth (Sasha Krusharska), a professora judia que acaba por despertar o interesse de Walter (Jürgen Frohriep), um soldado enviado para uma aldeia na Bulgária que acaba por ficar responsável pelo campo de trânsito de judeus gregos. Um rosto humanizado que parece evocar aquela imagem que vemos, apenas por breves momentos, entre as portas do comboio que parte, no documento de Resnais.
É também uma mulher que dá corpo e alma a Solo Sunny (1980), um dos seus últimos trabalhos, realizado em parceria com Wolfgang Kohlhaase, sobre a vida de uma jovem cantora popular, insatisfeita com a vida na RDA. Aliás, a protagonista, Renate Krößner, viria a receber, em 1981, o Prémio de Melhor Atriz no Festival de Berlim por essa interpretação.
Konrad Wolf é um cineasta que assenta o seu cinema na força de personagens fiéis a si próprias, embora captadas num universo em mudança. Infelizmente, não vimos O Céu Dividido (1964), justamente um dos três filmes exibidos na Cinemateca Portuguesa — mas a vasta amplitude da obra de Wolf é evidente, assim como a sua capacidade de aliar um forte estilo visual apoteótico, frequentemente entrelaçando histórias pessoais com questões sociais e políticas. Sim, Konrad Wolf, um cineasta visionário.

