Numa altura em que o Festival de Cannes ultrapassa um terço da sua edição podemos já dizer que não tivemos ainda candidatos claros a Palma de Ouro, mas também, verdade seja dita, não sofremos grandes deceções. Talvez devido à quase exclusividade de autores consagrados, quase todos repetentes no festival. Mas faltam ainda muitos filmes para ver.
Ainda assim, destacamos três dos que mais nos impressionaram: I, Daniel Blake, a nova incursão do britânico Ken Loach no cinema realista, abordando da forma mais ligeira o tema dramático a deriva kafkiana vivida pelos candidatos a pensões de invalidez no sistema de saúde britânico, como o caso do pensionista que dá o nome ao filme, subscrevendo ainda que a realidade do sistema de saúde da União Europeia irá matar-nos.
Mesmo fora dos eleitos para Seleção Oficial de competição, Neruda do chileno Pablo Larraín, deixou já uma marca no festival como um filme arrebatador, precisamente por não nos dar o filme mais previsível sobre o poeta nacional – o tal que Gael Garcia Bernal considera o maior poeta do mundo -, mas quase um misto entre a seiva que corria no sangue daquele que seria um natural candidato a Presidente, com todo o seu lado hedonista, atravessado por um road movie em que o inspetor da polícia Oscar Peluchonneau (Bernal) persegue Pablo Neruda pelo país, como se fosse a sombra de uma personagem secundária do poeta à procura de protagonismo.
O mexicano Gael Garcia Bernal que voltou a trabalhar com Larraín depois de Não, cumprimentou-nos em português e elogiou os poemas de amor de Neruda. Os primeiros poemas que escreveu, disse, foram os poemas de amor, que ele escreveu quando tinha apenas 20 anos, mas que parecia ter sido já divorciado por seis vezes… Mesmo se lhe perguntarmos, não deixou até de referir Fernando Pessoa, como uma das suas maiores referências poéticas: o Pessoa foi um génio, que parece cada vez mais atual. Leio-o com muita frequência.
America on the road
Apesar de estarmos muito longe de Jack Kerouac, American Honey (doçura americana?), o primeiro filme da britânica Andrea Arnold nos EUA, quarto da sua carreira, é uma viagem intensa e insólita. Ao longo de 165 minutos um alucinado Shia LaBeouf acompanha um bando de adolescentes inadaptados, em trânsito pelas estradas americanas ao som de decibéis estridentes de house, R&b, hiphop e vapores de droga.
Se quiséssemos definir American Honey poderíamos arriscar que é um pouco como o road movie ideal de um VJ que capta os left overs de uma white trash middle America, muito possivelmente aquela mais calhada a votar Trump. De resto, o filme começa com Star (a não atriz Sasha Lane) no interior de um caixote do lixo à procura de comida. Seduzida pela personagem colorida de LaBeouf e pela possibilidade de ganhar dinheiro fácil, decide escapar à sua estrada sem saída e aventurar-se pelo desconhecido.
Atenção, American Honey não é uma versão moderna de Paris, Texas, de Wenders, mas está mais próxima de Um Coração Selvagem, de Lynch, ainda que nos pareça até uma revisitação moderna de O Feiticeiro de Oz, só que filmada por Andrea Arnold, a autora de Fish Tank/Aquário. Nesse sentido Star é, por assim dizer, uma versão da ingénua Dorothy, que, curiosamente, também faz uma para Kansas (City), numa yellow brick road revisitada até por personagens que lhe deixam a sua marca e de novo numa estrada sem regresso. Mas ‘não podemos regressar a casa’, como diria Nicholas Ray. Não está lá ninguém.