A Tribo é o tal filme ucraniano que anda nas bocas do mundo desde que causou sensação em Cannes – isto em 2014, quando venceu o Grande Prémio da Semana da Crítica. O que seria apenas o início de um périplo de festivais, prémios e distinções. O mesmo se diga do realizador Myroslav Slaboshpitsky, com esta fulgurante e multipremiada estreia em formato de longa metragem, apesar de contar já com algumas curtas curiosas. E espanta não só pela premissa formal de nos sugerir uma história sem diálogos ou legendas e ter até a desfaçatez de propor uma redescoberta da linguagem do cinema com um cast integral de não atores surdos estreantes. A Tribo estreia finalmente em Portugal, pela mão da distribuidora Legendmain. Uma decisão que aplaudimos, até porque acreditamos muito no potencial deste filme marcante.
Antes ainda do sucesso em Cannes, onde arrecadou três prémios na Semana da Crítica, já o Jorge Pereira do C7nema me alertara para o seu potencial. Acabei, no entanto, por só o ver em Karlovy Vary, ainda que em versão screener e a correr.
Foi então em Erevan, na Arménia, que desfrutei destes avassaladores 130 minutos até ao trucidante final. Entretanto, A Tribo soma e segue: após conquistar em Erevan o Golden Apricot, o prémio principal, bem como o prémio FIPRESCI, num júri que tivemos o privilégio de participar.
Seja como for, aqui não corremos o perigo de ficar ‘lost in translation‘, mesmo sem o conhecimento da linguagem gestual. Não só essa ausência de palavras não esvaziou o filme, como pelo contrário o tornou mais expressionista, plástico e com uma pesada carga emocional. Mesmo sem conseguirmos seguir a história de fio a pavio, o que acaba por ser um risco assumido, mas de igual medida em comunicação. Algo que acaba por ser sublimado pela compreensão – leia-se opção formal – de seguir os longos planos sequência permitindo uma eficaz descrição de personagens e até um coerente fio condutor de interpretação para os atores. Temos então as ações e emoções a falar mais alto que as ações.
Apesar de tocar levemente a estrutura do cinema mudo, The Tribe não integra esse conceito. A esse propósito, seria o próprio Slaboshpytskiy a confessar-me as suas influências na entrevista que nos concedeu na altura. Aí refere que uma das suas principais influências foi mesmo o filme Tabu, de Miguel Gomes. Desde logo pela forma como lidava com os códigos do cinema mudo. Em todo o caso, o ucraniano de 40 não é estranho ao género, pois em 2010 levou ao festival de Berlim a curta Glukhota/Deafness num curioso ensaio que acabou por estar também na génese deste Plemya(/A Tribo. Teremos de falar de Filhos de Um Deus Menor, de 1986? Na verdade, esta tribo de personagens vai muito para além desses códigos.
Logo no início percebemos o desafio. Após dos créditos que anunciam essa ausência de diálogos e legendas, o som de trânsito impõe-se numa longa sequência em que um jovem pede a uma transeunte direções com gestos para a instituição de surdos onde irá viver. A câmara imóvel observa a cena à distância e leva-nos a seguir Serguey, a personagem de Grigoriy Fesenko, um jovem que o realizador disse ter tirado da rua e da má vida. Logo na apresentação da aula de cultura europeia conhece os elementos problemáticos que introduzirão às praxes violentas e aos códigos do submundo daquela instituição. Gradualmente, acabará por impor-se e entrar mesmo no anel de prostituição e proxenetismo dirigido por um professor local regulando ainda uma rede de emigração para Itália.
Após uma escaldante cena de sexo ocasional com Anya (Yana Nokikova), uma das jovens que se dedicavam a satisfazer sexualmente os camionistas locais (com Svetka, interpretada por Rosa Balby), o jovem acabará mesmo por a engravidar, gerando uma extrema sequência de aborto improvisado, em mais uma nova sequência de altíssima entrega de Novikova. De salientar o nível muitíssimo relevante desta dupla sem qualquer experiência.
Kudos ainda para a estética visual trabalho do filme, graças ao trabalho do DP Valentyn Vasyanovych, também ele debutante, exímio na escolha dos grandes planos em widescreen, aos planos sequências e até as diversas cenas de elevadíssimo recorte emocional ou violência.
Apesar de Slaboshpitsky ter rendido parte da crítica a seus pés, A Tribo deixa ainda material suficiente para calorosas, seguramente apaixonantes, debates de opinião. Seja a opção formal de longuíssimos planos sequência, da opção da duração acima dos 120 minutos ou mesmo de alguma violência exacerbada sem a devida justificação. E foi até no meio dessa diatribe que fixei algumas ideias sobre os inúmeros méritos de A Tribo. Seguramente, um filme que nos enche as medidas, sendo que um dos elos mais fortes será o facto de se nos agarrar à memória e não a largar. Não como aqueles que até deixam boa impressão, mas que delicadamente se desvanecem.