Mais de um quarto de século após a sentença liberal de Francis Fukuyama que proclamava o “fim da História”, percebemos que esse sonho capitalista reforçado com a queda do Muro de Berlim não podia, afinal de contas, estar mais desfasado da realidade. Não só não se esbateram as diferenças entre ricos e pobres, como a xenofobia, as crises económicas, fruto de um exagerado e desregrado liasser faire, tornaram o mundo bem menos seguro e a gerar toda espécie de perniciosos fundamentalismos e nacionalismos. Valerá a pena citar nomes?
Ciente desta realidade, o haitiano Raoul Peck contrariou o guião da História e coloca agora o dedo na ferida ao sugerir uma espécie de back to basics, em que se procuram os ditames que levaram o rebelde Karl Mark a desmontar a base do pensamento capitalista e a criar os fundamentos do manifesto do Partido Comunista. É nesse período efervescente que se centra a génese do registo oportuno e conseguido deste filme, focado num momento anterior à criação do tal livrinho intitulado O Capital que viria a ser mais conhecido que a Bíblia.
Na génese de Peck, ativista político e ex-ministro da cultura, estão também os fundamentos que o levaram a exaltar os os valores de igualdade sublinhados no documentário I Am Not Your Negro, nomeado ao Óscar respetivo, dando força aos escritos e memórias do autor James Baldwin aqui focado nos sucessivos atentados aos direitos civis dos negros americanos.
Afinal de contas, tanto O Jovem Karl Marx como Eu Não Sou o Teu Negro marcam à sua maneira o mundo em que vivemos, chamando a atenção para os paradoxos do capitalismo e a insolência da raça. Estes são os dois grandes temas que me dominam; são as minhas duas pernas, por assim dizer, esclareceu na nossa entrevista o realizador ativista. Importantes eles são. Importa saber é se vão farão a diferença.
Estamos em 1844, numa altura em que o jovem Karl Marx (na composição muito consistente de August Diehl), ainda com 26 anos, conhece Friedrich Engels (Stefan Konarske), filho de um burguês dono da maquinofactura que lhe permitirá verificar a gritante diferença de classes criada pela Revolução Industrial. É claro que este filme não evita o lado de Ciência Política e um irresistível name droping da filosofia alemã, de Feuerbach e Hegel, tal como os idealistas, como Proudhon, de onde parte a inspiração para enfrentar esse capitalismo desumanizado e a definição da luta de classes. A eficácia de Peck consiste em passar a mensagem sem nos aborrecer com conversas inúteis. Isto graças ao guião bem urdido escrito de parceria entre Peck e Pascal Bonitzer.
É esse período fértil influenciado pelo estudo das condições dos trabalhadores ingleses, mas também onde se começam a perceber as diferenças entre os ambos; Engels, mais adepto da luta ativista; Marx, a pressentir a necessidade de um estudo mais profundo, como haveria de provar mais tarde nas obras posteriores. É neste clima que surgirá a figura do comunista, evoluindo do ‘comum’e da sociedade igualitária.
Atenção ao clip final, com a fusão do aplauso da criação do Partido Comunista o hino de Bob Dylan, Like a Rolling Stone, introduzindo também as imagens do crash de Wall Street, Che Guevara, o Muro de Berlim, o movimento Ocupy Wall Street… Ou seja, ficamos já preparados para I Am Not Your Negro, o filme escolhido pelo IndieLisboa para encerrar o festival e previsto para estrear nas nossas salas durante o mês de maio.