Spike Lee pintou a manta no passado festival de Cannes qando ali apresentou o explosivo BlaKkKlansman. Como tinha de ser. Sabemos agora que a tradução portuguesa decidiu acrescentar no título O Infiltrado. Sabe-se lá com que intenção. Mas que não é sequela do filme de Spike de 2006 isso estamos certos.
É ainda à sessão de Cannes que nos remetemos e aos aplausos incontidos na sessão de imprensa que nem sequer esperaram pelos créditos finais. Talvez porque a ficção se aproximava demasiado do real, tal como sucedera há quase 30 anos atrás, com Do The Right Thing, também em Cannes.
Foi em 1989. Spike ficou fulo por ter perdido a Palma de Ouro por A Malta do Bairro, curiosamente com grande parte da mesma equipa que participou neste novo filme. E quem era o Presidente do júri na altura? Recorda-nos o The Hollywood Reporter que era Wim Wenders e cuja opção foi para Sexo, Mentiras e Vídeo. Pois é, esse acabou por ser o filme pré-Rodney King e dos riots de LA em 92. A História é mesmo macaca. Este ano, é Wenders que pede inspiração ao senhor para que consiga a inspiração para um filme bem sucedido, ao passo que Spike regressa a Cannes com um dos seus melhores filmes de sempre e que arranca 10 minutos de aplausos na sessão de gala. Ironias.
E o que temos então? Temos Spike Lee de braço dado com Jordan Peele, percebe-se aqui o dedinho dele, a surfar na onda ‘black is beautiful’. E é aqui também que temos a outra enorme surpresa deste BKKK, ou seja, Mr. John David Johnson, o filhote de Denzel, que em boa hora abandonou o futebol (americano) para se dedicar à arte em que o pai é um grande senhor. Se a coisa pegar, o que deve ser inevitável, esperamos vê-lo na short list para as nomeações de uma nova concorrência negra à estatueta dourada.
Convém explicar que grande parte do triunfo do filme passa pelo humor que o cineasta colocou para falar de coisas bem sérias (e aqui sente-se de novo a proximidade de Peele), ainda que inspirado na história verídica de um negro que, nos anos 70, se infiltra do KKK e chega à mais alta patente da organização local.
O filme tem inúmeros pontos de interesse, como o discurso inflamado dos Black Panthers, o jogo entre John David Washington, capaz de imitar um Kings English e o jive negro, e o ‘judeu’ Adam Driver, que se converte quase em nazi, para ‘enrolar’ o klansman local David Duke (Topher Grace). Pelo meio, há ainda pesadas referências cinéfilas, com chamadas de atenção para clássicos com conteúdo racista, como a cena de E Tudo o Vento Levou com que o filme abre e, mais adiante, o assinalar do racismo de David Wark Griffith, no majestoso O Nascimento de uma Nação. Ou até a invocar em jeito de brincadeira alguns títulos assumidamente blaxploitation, como Foxy Brown, Shaft, Super Fly, entre outros.
O filme fecha com o perturbador e violento episódio ocorrido ocorrido em Charlotteville, em agosto passado, pouco depois de terminar a rodagem. Mas que Spike Lee decidiu incluir o momento em que um carro a alta velocidade embate em contra-manifestantes de uma marcha ultra racista que tirou a vida a uma jovem. Vê-se-á ainda Donald Trump num comunicado a defender que nesse grupo também havia muito boa gente. Ao fim e ao cabo, apesar da ação se desenrolar nos anos 70, a atualidade mantém-se inegável.