Na nossa entrevista recordou Godard e Oliveira. E a liberdade.
Desde já aviso que obituários não são, nem nunca foram, o meu forte. Normalmente, são aqueles artigos feitos à espera desse momento, dessa interrupção da vida. Em que se exaltam qualidades e se recorda a carreira. Mas no caso de Varda é diferente. E digo isto assim, na primeira pessoa, dispensando formalidades, apenas para relatar uma visão pessoal fruto de dois encontros com Agnès. O primeiro, em 2008, em Veneza, a propósito de As Praias de Agnès, em que esta dama implorou para que fizessemos a nossa entrevista na praia, ali mesmo ao lado; o outro, uma década depois (ou quase), em Cannes, na promoção de Olhares Lugares.
Agnès Varda deixou-nos. E agora? Deus nos conserve Godard, seu amigo e cúmplice da nova vaga do cinema francês que mudou o cinema mundial. Diga-se que Agnès nunca tive qualquer problema em abordar os limites da idade. Isso mesmo referiu a propósito da brevíssima colaboração que teve com Manoel de Oliveira.
Portanto, connosco foi também Godard e Oliveira. Em ambos os casos, recordo os olhos verdes e o sorriso que nos fita quando quer interessar-se por nós. Em ambos os casos nunca foi só uma entrevista. Ela também quer saber quem somos, o que fazemos. Partilha connosco as suas dúvidas.
Sim, trata-se de liberdade, uma expressão que associa à Nouvelle Vague. Só que nessa altura, eu era diferente deles, eu estava mais interessada na estrutura e em conhecer pessoas do que os outros que faziam filmes maravilhosos. Sobretudo o experimental Godard. Ela que sugere em Visages Villages, em parceria com o artista visual JR, ampropósito de uma alteração na sua viagem para visitar o amigo JLG na sua casa na Suíça. O ‘momento’ que se tornou ainda mais enigmático e misterioso com a mensagem dele.
Percebe-se a devoção, sem reverência. Ele (Godard) é o único com que tenho ligação até hoje, porque continua a ser totalmente livre – por vezes mesmo de forma insuportável, mas sempre livre.
Tivemos o ‘momento JLG’, mas haveríamos de ter também o ‘momento Oliveira’, quando lhe recordamos esse encontro para a série dela para a telvisão, Agnès de ci de la Varda, de 2011. O nome desperta dela uma emoção imediata. Mas não temos tempo, lamenta-se,a apressando-se a falar desses dez minutos que filmou com ele. E explica que é a vida como ela é, ao referir-se ao tempo. E confirma: eu tenho tanta paixão pelo cinema que não sinto as consequências da idade.
Veja-se este excerto histórico em que Oliveira faz de mimo e Agnès o comenta com doçura. Ele “luta contra o destino” e “diverte os seus amigos”.
Será, afinal de contas, arte o gesto de também juntar pessoas? É disso mesmo que se trata Olhares Lugares. Um exercício do olhar, do olhar de Varda que é picado por agulhas, como parte do tratamento oftalmológico. Arrepiaram-se quando viram a agulha no olho?, ela quer saber. Já levei mais de 40 picadas. É esse olhar perfurado que seguimos incondicionalmente e essas reprodução em grandes planos. Imagens que criam ligações entre as pessoas, como sugere JR. É isso mesmo. Assim ficamos, ligados. Até porque, cada rosto é uma história.
Saudades de Agnès e Oliveira.