Dificilmente haverá melhor combinação entre a paixão pelo cinema e o futebol. Retratar a ascensão fulgurante daquela que será, muito provavelmente, a maior estrela do futebol de todos os tempos até poderia ser um registo demasiado marcado por elementos déjà vu, só que através do olhar do britânico Asif Kapadia aproxima-se muito à emoção apaixonada como as estrelas de futebol são facilmente encaradas deuses do Olimpo. Kapadia até esteve para fazer um filme sobre Cristiano Ronaldo, mas acabou apenas por participar na produção do documentário Ronaldo, lançado em 2015, quando Asif ainda estava evolvido em Amy Winehouse. Revela agora em Cannes Diego Maradona, sobre o período áureo em que o jogador passou em Itália, entre 1984 e 1991. Pena é que Diego Maradona não tenha vindo apresentar o filme no festival.
Entramos no filme da forma mais fulgurante, como se de num filme de ação se tratasse. Dentro de um carro pequeno, avançamos no pequeno cortejo que leva o jogador à apresentação no estado São Paolo, em Nápoles. A máquina ruge, derrapa, acelera, desvia-se in extremis dos peões. Contudo aqui não se trata de Ayrton de Senna, o documentário que o autor de Amy Winehouse fez sobre a história do famosíssimo piloto de Fórmula 1. Curiosamente, Kapadia explicou até que Maradona era um grande fã de Ayrton de Senna, quanto mais não seja porque ambos foram famosos em Itália ao mesmo tempo, até porque “Diego ganhou um campeonato pelo Nápoles em 1990, no mesmo ano em que Senna foi campeão”.
Este acaba por ser um sinal de que a adrenalina dos estádios em delírio, das celebrações a cada golo mágico obtido em dribles impossíveis, se pode misturar também com as complexas ligações com a Camorra local e todo o circo em redor, em particular com Carmine Guiliano, o patrão da mafia local, e a partir de carta altura fornecedor de droga e mulheres ao jogador. Aliás, assim que chega a Itália logo lhe perguntam: “sabe o que e a Camorra?” Se não conhecia ficaria conhecer. Isto naturalmente numa altura em que o controle de doping era praticamente inexistente. Como se tudo fosse visto com a euforia de um snif de cocaína. Mas tudo o que sobe acaba por trazer a ressaca e premeditar o fim do sonho.
É claro que parte de tudo isto pertence mais ou menos à história, tal como o golo da ‘mão de Deus’ no Mundial de 86 no México, de lembrança agridoce para Portugal. A grande diferente é que nos esquecemos de tudo isso a partir do momento em que entramos naquela correria estrada fora. E porque Kapadia teve acesso a um volume impressionante de imagens de arquivo, que lhe permitiu basicamente fazer o filme sem necessidade de recurso às irritantes ‘talking heads’ que explicam quando não podemos ver. Pois aqui vemos tudo. E escutamos até a voz (em off) de Diego que irá comentando todos os seus pontos mais altos, tal como os mais baixos. Igualmente importantes, são os relatos do seu preparador-físico Fernando Signorini, seguramente uma parte importante do sucesso do jogador.
Diego Maradona é assim um registo completo (e complexo) do período italiano, mas que nos mostra também o lugar onde nasceu, Fioritto Villa, na altura um autêntico bairro de lata nos arredores de Buenos Aires. Passando por um curto flashback apenas para dar conta da forma traumática da passagem de Maradona pelo Barcelona, que acabou com cenas de pancadaria no campo.
É interessante viajar até 1984, o primeiro campeonato de Maradona em Itália, perceber os cânticos racistas e xenófobos eram vulgares. Tais como as tarjas que escreviam que “Nápoles são os ‘africanos’ de Itália”, entre outros piropos.
Em Nápoles, Maradona conseguirá o milagre de recuperar uma equipa em risco de descer de divisão no campeonato mais exigente da altura e conquistar o ‘scudetto’ por duas vezes, isto num período em que o jogador conseguirá o Mundial na Argentina e ainda uma Taça UEFA pelo seu clube. Para os amantes de futebol naquela pobre região italiana isto era assunto sério de milagre e ‘dieguito’ a imagem de Deus nos relvados.
No final do filme, partilhámos com um conhecido jornalista argentino a qualidade ‘fora deste mundo’ de Maradona, apesar de ele referir que o documentário não trazia muito de novo. Talvez para um local, embora para o resto do mundo dificilmente deixará de ser um documento incontronável para recuperar a memória. Nesse sentido é um filme singular e precioso.