Hirokazu Kore-eda é um japonês em Paris com a missão de captar e filmar os espaços entre as coisas, entre as palavras, os conceitos. Naturalmente também entre a verdade, a mentira e a fábula através de um grupo de atores que testa essas possibilidades na procura de um filme. Já agora, será também essa a proposta ao espetador para encontrar o ADN da sua própria ‘vérité’.
Entra então em cena Catherine Deneuve e Juliette Binoche, mãe e filha, e a primeira vez juntas no ecrã, uma atriz outra argumentista, mas também Ethan Hawke, o marido, ator de segunda sem trabalho e alcoólico em recuperação, entre outras personagens secundárias numa aproximação ao universo confessional de verdades, segredos e mentiras – vamos lá assumir -, algo perto de Bergman (sim, há por aqui ecos de A Lanterna Mágica e de outros filmes). Ou talvez não. Porque tudo parece estar embrulhado em pequenas subtilezas tal é a simplicidade impregnada pelo japonês no filme. Como se fosse um origami ou um haiku. E essa poderá ser também a sua limitação se não motivar o espetador a desmontar a sua encenação. Porque tudo nesta ‘verité’ orquestrada pelo cineasta vencedor da Palma de Ouro em Cannes edição de 2018, com Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões, pode não passar de uma representação.
Claro que esta experiência europeia feita à medida de Deneuve e Binoche não pretenderá replicar exatamente o seu universo familiar no lado mais mundano da vida de uma família burguesa parisiense, gente de cinema, da representação. Eles são apenas personagens. Aliás, veja-se como elas (ou as suas representações) se divertem neste universo (poderão ser elas próprias ou talvez não), por exemplo com o deleite da atriz Fabienne (Deneuve) a ousar declarar numa entrevista, logo na sequência inicial (que mais parece retirada da comédia romântica de 1999, Notting Hill), ao comentar que o filme que está a rodar – e que se chama La Verité – “não será um grande filme”. Será este o filme que a filha Lumir (Binoche) escreve para a mãe Fabienne, deixando nas entrelinhas alguma ‘bagagem’, no sentido de algo não resolvido, entre ambas?
Talvez seja então mais interessante superar uma eventual e desconcertante leveza inicial (foi isso que nos aconteceu) – desviando-nos assim do que parece ser um mau filme voluntário (o tal que a atriz diz que não é grande coisa) – para procurar estes indícios, como se fosse um jogo de pistas para crianças, de encarnação de outras personagens, como o make believe assumido pela neta de que a avó Fabienne é uma bruxa (e que terá transformado o avô Pierre na tartaruga que vive no jardim), e aceitar até a verdade da peça ‘O Feiticeiro de Oz’, a tal que um dia a mãe Lumir interpretou (e que a mãe Fabienne assumiu que fora ‘horrível’).
Por aqui se vê que a verdade, ou a mentira, é aqui apenas material de jogo, de interpretação, de uma sedução que habilita Hirokazu Kore-eda a manobrar nesta proposta permitindo ao espetador (ou não) encontrar a sua própria verdade neste filme. Seguramente, não coincidente com A Verdade, do filme de Henri-Georges Clouzot, de 1960, protagonizado por Brigitte Bardot, a mesma atriz que motiva a Fabienne um esgar de duplos significados. Podemos então assumir La Vérité como um filme de duplos (ou triplos) significados que nos é servido como um jogo de crianças ou o teatro de cartão com figurinhas que vemos no filme. Ou talvez não. Talvez seja esse o adn de Kore-eda.