Ira Sachs foi um americano em Sintra. O autor de Love is Strange e Homenzinhos captou em Portugal o ambiente certo para a sua tragicomédia dominada pela presença de Isabelle Huppert à frente de um elenco de luxo. O filme esteve em Cannes em competição e foi lá que entrevistámos o realizador que passou recentemente por Lisboa, onde apresentou Frankie na Cinemateca Portuguesa. Falámos de Frankie, de Sintra, de Rui Poças e de cinema. E foi bom saber que Ira não quer trabalhar com alguém que não pudesse falar sobre a Chantal Akerman.
Insider – Aparentemente, ao ver o filme será correto dizer que este espaço e estas personagens poderiam acontecer num outro ligar? De que forma Portugal e a Isabelle Huppert se tornaram nesta inesperada combinação?
Ira Sachs – O que diz é verdade. Mas se vir bem, o mesmo sucede em vários filmes meus. Há algum tempo vi o filme do Satyajit Ray, o Kanchenjungha, de 1962, sobre umas férias de família nos Himalaias. Surpreendeu-me o tema e a estrutura do filme. Percebi que era um ótimo veículo para uma história. Quando conheci a Isabelle e pensámos em trabalhar juntos esta história ocorreu-me. Até porque ela é uma atriz capaz de representar uma atriz. E a ideia era transportá-la para um local diferente, até porque nunca pensaria em trabalhar com a Isabelle na América. Verdade seja dita, os franceses não têm histórias interessantes nos Estados Unidos… Normalmente, só quando se vão embora.
(risos)…
Por outro lado também não faria um filme com vários atores franceses em França. Por tudo isso Sintra e estas personagens fazem sentido.
Pode descrever-nos como Portugal entrou na equação?
Foi através do meu parceiro e companheiro Mauricio Zacharias. A sua mãe é portuguesa e têm uma casa em Cascais. Foram ela que sugeriu Sintra. Entretanto, lembrei-me que tinha lá ido com a minha família, a minha mãe e as minhas duas irmãs, durante uma viagem de férias. Nessa altura era um adolescente e tinha um diário. Agora quando regressámos passámos lá duas semanas. Depois de visitar a Quinta de Santiago e o parque em redor do Palácio da Pena, que parece quase um Éden, e a Peninha, percebi que conseguia construir uma narrativa irreal em redor desses espaços.
Temos de falar da morte, afinal de contas algo inevitável na vida. De que forma já lidou com ela?
Devo dizer que nos últimos cinco anos tive alguma proximidade com a morte. Felizmente, não com nenhuma doença minha, mas com uma amiga que morreu de cancro da mama. Nunca tinha estado tão perto dessa experiência. Foi algo muito forte, mas em que notei também como não se separa das coisas mundanas, algumas delas divertidas mesmo. O que nos leva a confirmar que a vida é muito mais forte que a morte. No entanto, para mim, este filme é a definição da família, algo que se aguenta mesmo diante de uma crise dessa magnitude.
Disse na conferência de imprensa que apreciava de trabalhar com equipas de pessoas que gostavam de cinema – de certa forma, equipas cinéfilas. Acha que essa aproximação a um ‘look’ ‘rohmereano’ era algo que foi intencional?
Eu acho que o (Éric) Rohmer nos deu permissão de criar um filme onde existe muita conversa e de saborear esse prazer. Mas diria que o filme foi mais influenciado pelo Rohmer em termos visuais. Por acaso vi com o Rui Poças vários filmes do Rohmer para compreender essa linguagem visual. Na verdade, a linguagem visual dos anos 70 e do final dos anos 60. Portanto, não será só Rohmer, mas uma ideia do espaço explorado pelo ator. É verdade que durante a rodagem estava também interessado em Fassbinder, sobretudo pela forma como ele vê o ator e a personagem. No filme (O Casamento de Maria Braun, de 1979) não é só a Maria Braun, é também a Hanna Schygulla. É essa a beleza do cinema.
Algo que acabou por ser coroado até com um momento ‘divinal’, falo do fim do filme…
Claro. Felizmente trabalhei com uma equipa totalmente portuguesa. Tive uma relação excelente experiência com o Rui que me disse que este teria sido o filme mais difícil para ele. Mas o que eu gosto nele é que torna tudo muito fácil.
A ideia era filmar a emoção?
Entre os dois assumimos o compromisso de filmar de uma forma em que nunca usaríamos um plano para enfatizar a emoção. A emoção viria pela coreografia e movimento das personagens e das relações entre si. O que faz com que o espetador esteja a observar ao mesmo tempo o ator e a personagem. Estão a apreciar a performance. Nesse sentido o filme tem um lado teatral que possibilita uma certa intimidade não só com Frankie, o Jimmy ou o Ian (Ariyon Bakare), mas também com a Isabelle (Huppert), o Jérémie (Renier), o Pascal (Greggory). Vemos ambos ao mesmo tempo.
Percebe-se que no filme há uma antecipação de dor que parece afetar todas as personagens. Como foi dirigir essas intensidades, esses olhares?
Por exemplo, foi interessante dirigir o Brendon (Gleeson), porque ele tenta não se expor. O que lhes pedi foi para interpretarem o momento e a proximidade com a morte e não acrescentarem qualquer subtexto.
Poderemos dizer que Sintra é também uma personagem neste quadro?
Claro. Sintra pode causar uma primeira impressão demasiado forte, pela beleza mas também pelas pessoas, mas só ao permanecer alguns dias é que começamos a gozar verdadeiramente este local.
Uma pergunta técnica: a fotografia do Rui Poças foi toda feita com luz natural?
Digamos que foi luz natural, mas com algum aumento. Ou seja, havia luzes, mas a luz era apenas para realçar essa naturalidade. Na verdade, eu contrato os fotógrafos pela forma como trabalham a luz, só depois evoluímos para a forma de filmar. Neste casso, o tratamento de luz é um trabalho semelhante ao de um ator. O maior desafio foi conceber um trabalho num filme que se desenrola durante um único dia. E num local que é um microclima. É nestas alturas que a inspiração e opção de aceitar essas transições se torna relevante. Algo que o filme acaba por beneficiar.
Curiosamente, as personagens de Frankie são bastante diferentes de outros filmes seus, como por exemplo, Love is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha (2014) ou mesmo em Homenzinhos (2016). Sente que por ser um realizador gay as pessoas esperam de si o tratamento de personagens gay? Como lida com essas expetativas?
A resposta não é fácil. Digamos que enquanto realizador não estou afastado de problemas económicos – ou do dinheiro necessário para fazer um filme -, tal como não me afasto da minha própria vergonha ou até do meu espaço. O que tento é estar consciente de que tudo isso existe. Dito isto, o que me interessa mais é a representação, muito mais do que a mensagem. Não tento fazer filmes de mensagem. O meu marido é equatoriano, é um homem gay, e está sempre a sugerir-me temas de causa. Mas nem sempre é fácil ou adequado. É claro que mantenho o meu ativismo e o lado comunitário.
Mencionou a aproximação a Pialat e a Rohmer, mas será que aquela imagem final terá porventura alguma aproximação a Kiarostami?
Descobri o Kiarostami quando era ainda bastante jovem e é alguém que me diz muito. Acho que a sua compreensão da natureza é muito profunda. Acho que esse plano tem algum eco com o final de Através das Oliveiras (1994). Consigo ver o reflexo dessa imagem, embora a intenção é que se trate de um palco, em que existe um cast de personagens que fazem a sua derradeira vénia. Por outro lado, acho que fiquei um pouco deslumbrado por aquela vista quando o vi. Acho que responde bem à cena.
Aceita no seu caso a definição de um cineasta cinéfilo?
Não sei bem o que isso é. O trabalho é o trabalho. Mas lembro-me de quando trabalhei em televisão, em que passei dois anos a escrever guiões e alguns projetos que não avançaram, decidi a certa altura que não queria trabalhar com alguém que não pudesse falar sobre a Chantal Akerman. Acho que é um luxo dizer isso, mas é algo em que acredito mesmo.