Sexta-feira, Dezembro 6, 2024
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À descoberta das realidades que importam – no Visions du Réel

 

O festival (online e gratuito) Visions do Réel deu-nos a conhecer as realidades urgentes e arrebatadoras de Purple Sea, Davos e A Fome de Lázaro.

Dentro da inesperada realidade geradora de novas soluções, pelo menos no que diz respeito ao funcionamento e acesso a festivais de cinema, temos seguido com alguma atenção a programação do Visions do Réel, o importante festival de cinema documental suíço cuja programação integralmente online (e gratuita) se desenrola até ao próximo dia 5 de maio.

Depois já da descoberta do espantoso e surpreendente Amor Fati, de Cláudia Varejão, em competição na seção de longas metragens, percebemos também com estes tempos absolutamente históricos geram imagens reais que superam em muito a própria ficção e dão-nos conta de uma realidade bem diferente daquela a que estamos habituados ou que nos é totalmente desconhecida e mesmo desconcertante. É talvez essa a sensação que fica depois de assistir ao impressionante e duro documento de pouco mais de uma hora, em Purple Sea, com imagens inenarráveis registadas pela síria Amel Alzacout; mas também da realidade inesperada de  Davos, num olhar panorâmico sobre a aldeia mais alta do mundo mais conhecida por receber o World Economic Forum. Ou até a estranheza do evento que jota a aldeia brasileira de Monteiros, durante as celebrações religiosas dedicadas a São Lázaro.

Como filmar uma situação de náufragos sem o recurso a uma mega produção plena de feitos especiais? Talvez só mesmo o trauma da experiência. Valeu o recurso tecnológico das imagens captadas por uma câmara no relógio de pulso da artista síria Amel Alzacout que usava quando a embarcação ilegal em que procurava alcançar a costa turca saindo de Lesbos, em 2015, com mais de 300 pessoas naufragou em pleno Mediterrâneo, e em que perto de meia centena perdeu a vida, permanecendo durante as cerca de 15 horas à deriva agarrada a bóias e aos outros náufragos.

Neste segmento generosamente banhado pela luz do sol que ilumina o tal mar azul e permite surpreendentes imagens subaquáticas de uma beleza assustadora vivemos o turbilhão permanente dos movimentos das pernas e dos braços, em que cada gesto pede um certificado de sobrevivência. O elemento sonoro sublinha essa luta permanente na água fria, com os ruído da borracha que vai abafando o ruído dos gritos, vai sendo alinhavado (ou apaziguado) pela locução da voz serena da própria Amel numa suposta carta endereçada ao companheiro Khaled Abdulwahed, também ele artista e cineasta a viver na Alemanha, também co-realizador deste projeto exibido em estreia mundial em Berlin, na secção Forum Expanded.

São as palavras dessa missiva, um pouco como a carta de Robert Desnos escreve a Youki do campo de concentração de Buchenwald, em 1944, que acrescentam espessura àquelas imagens líquidas, estranhamente belas nos seus azuis das calças de ganga ao laranja das bóias de salvação. Sem rostos porque os refugiados não têm rosto. Pois aqui, ao largo da ilha de Lesbos, não estamos muito longe de Buchenwald, numa luta indómita pela vida. “Está um lindo dia. O céu brilha. O mar é de um azul purpúreo”, escuta-se, antes das mesma voz se procurar distrair e sugerir “vou aprender alemão e ver soap operas sírias no youtube”. Até descansar: “Ontem sonhei, estava no mar, deitada de costas. O sol esta quente, o mar carmim. Já não tenho medo”.

O que poderia ser o antípoda desta realidade de sobrevivência? Talvez a reunião de alguns habitantes da cidade de Davos a ponderar os prós e (sobretudo os) contras de albergar há meio século o Fórum Económico de Davos, onde supostamente os países mais ricos do mundo procuram soluções mais ou menos igualitárias. No entanto, Davos, o documentário assinado por Daniel Hoesl e Julia Niemann, captar antes a realidade alternativa que circunda este evento. E não deixa de ser paradoxal a visita que a equipa faz a uma quinta local para assistir ao nascimento de um bezerro – afinal de contas um nado morto. Há ainda emigrantes portugueses que pescam trutas e mostram o agradado do dinheiro fácil auferido durante este período;  ou os grupos de ativistas radicais que preparam a sua receção aos chefes de Estado dos países mais ricos (onde não faltam os cartazes que denunciam a política de destruição da Amazónia promovida de Bolsonaro), ou a reunião da segurança e os avisos para o manuseamento das câmaras (não vá algum gesto brusco acerta em algum chefe de estado ou monarca, que se movem “com total liberdade”). Por isso, quando chegamos ao final não é a falta de Trump que sentimos, pois essa pode ser mesmo a imagem que dispensamos.

Há ainda uma viagem ao interior do Brasil, em A Fome de Lázaro, mais concretamente ao sítio do Cipó dos Monteiros, na Cachoeira dos Índios, no estado nordestino do Paraíso, em que do crítico de cinema convertido em cineasta Diego Benevides, descrever de forma precisa os festejos populares de devoção a São Lázaro. Até porque no final o cão acaba por ter um momento de plena igualdade com o humano. Em concurso na secção de curtas, A Fome de Lázaro é um candidato  (em caso de vitória) a um lugar para nas nomeações aos Óscares de 2021.

 

Purple Sea, de Amel Alzacout e (Seleção oficial de longas)

Davos, de Daniel Hoesl e Julia Niemann (Seleção oficial de longas)

A Fome de Lázaro, de Diego Benevides (Seleção oficial de curtas)

 

O festival Visions du Réel decorre de 17 de Abril a 5 de maio

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