Sábado, Dezembro 14, 2024
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Alexander Markov – Red Africa: “Aqui vemos a manipulação da propaganda”

Alexander Markov regressa ao IndieLisboa para apresentar Red Africa (hoje, dia 5, no Ideal, às 22h), um documento que parte do projecto anterior (Our Africa, Indie 2019), abordando a partir de um ângulo mais profundo a questão da propaganda soviética nos países africanos acabados de sair do colonialismo. Nesta co-produção entre a Rússia e Portugal (Kintop e RTP) parte-se igualmente do imenso arquivo de imagens captadas por documentaristas soviéticos durante várias décadas, desde os anos 60 até à queda da União Soviética. Aí se capta a utopia e aproximação geopolítica ao continente africano, incluindo as colónias portuguesas, sublinhadas pelo trabalho muito cuidado na edição sonora, permitindo uma reflexão analítica e uma leitura mais apurada sobre o seu próprio contexto de propaganda. Algo que nos permite perceber o que se esconde por detrás do verniz ideológico do glamour desta URSS e da máscara destinada a vender o paraíso socialista da época. O segredo desta leitura reside no apurado desenho de som não linear que combina som oficial de discursos, com material recriado, além de banda sonora captada na época.

Inevitavelmente, um filme que nos remete para a actualidade de hoje vivida no conflito com a Ucrânia, onde o lado militarista vigoroso eclodiu depois de anos de soft power com diversos líderes europeus.

Falámos com o documentarista Alexander Markov (49 anos) durante a apresentação de Red Africa no recente festival de cinema documental Visions du Réel, ocorrido em Nyon, na Suíça.

Red Africa (Imagem: Kintop)

Gostei muito do seu filme. Especialmente, o meticuloso trabalho com o som e a forma como é montado. Pode descrever-nos esse processo? 

Comecei a trabalhar com o som na Rússia, com um ótimo diretor de som, o Sergey Moshkov, que trabalhou com o Alexander Sokurov em vários projectos (Moloch, Taurus, A Arca Russa, Pai e Filho…). Para mim, era muito importante retirar todo o som da propaganda soviética, muito aborrecido, que descrevia os países africanos a iniciarem um percurso no comunismo. A ideia do som foi sendo desenvolvida ainda em S. Petersburgo.

A pós-produção de som já foi feita nos estúdios de Lisboa?

Sim, entretanto, vim para Lisboa fazer a pós-produção, com um dos maiores realizadores e misturadores de som, o Pedro Góis, de Lisboa. Gostei imenso de trabalhar com ele. Na verdade, na altura, ele não tinha percebido bem a razão para eu não aproveitar o som original. Mais tarde escreveu-me a dizer que compreendera tudo e apoiava a minha forma de criação. No fundo, percebeu essa dimensão essencial que não era afectada pelo som – quase como um filme mudo.

Sim, completamente. Isso dá-nos uma outra visão do que realmente vemos. 

Certo. Era uma essência que deveria ser muito concreta. Por exemplo, o som das medalhas dos soldados na Tânzania ou os soldados congoleses quando se encontram com o Patrice Lumumba (1925-1961). Esse é um som militarista. Isso é apenas um exemplo da opção por este caminho. Nem todos sons deveriam ser gravados, mas numa forma dramática. Esse drama e o som deveriam trabalhar juntos. Essa era a ideia principal.

Sim, totalmente diferente do som original e da mensagem de propaganda…

Por vezes colocava o áudio soviético, só para me lembrar desse ponto de vista. Qual era o ponto e vista dos realizadores na altura, dos estúdios, dos patrões comunistas. No fundo, o que eles pensavam de África, como eles vendiam o continente africano aos soviéticos, mas também aos próprios africanos.

No fundo, uma forma de censura

Repare, trata-se de uma co-produção entre a URSS e os países africanos. Os profissionais de cinema estavam entre os dois tipos de censura. Do lado soviético e do lado africano. O que é compreensível.

Fale-me do trabalho realizado em Lisboa, no estúdio Kintop.

Sim, foi aí que fizemos mistura de som. O Pedro Góis deixou a sua opinião, já que a minha versão não estava ainda muito trabalhada. É a visão dele que está agora mais presente. De uma forma em que agora já não temos receio do silêncio. Nesse sentido, o silêncio é também a nossa arma. Como sucede, por exemplo, no funeral do Leonidas Brejnev (1906-1982), onde os diversos líderes comunistas de todo o mundo vão despedir-se dele. Porque também têm receio dos seus próprios regimes. É isso que se vê também no seu olhar. Por isso, decidimos fazê-lo sem silêncio. Por vezes, com uma música.

Por falar no Kintop, gosto imenso do trabalho da Susana Sousa Dias e da forma como ela usa as imagens de arquivo. Fale-me um pouco do trabalho que realizou com ela e com o Ansgar (Schaefer).

Eu também aprecio muito o trabalho da Susana. Conheci-a, a ela e ao Ansgar, em São Petersburgo, mas apenas nos conhecemos. Na altura descrevi a minha ideia para um projecto Our Africa. Ela gostou. Ela e o Ansgar acharam que faria sentido concorrer ao ICA com um projecto focado nas antigas colónias portuguesas. Decidimos o conteúdo em 2019, no qual esteve envolvida toda a equipa do Kintop.

A cena inicial de Red Africa com os escravos parece ser a única que destoa do conjunto, pois parece mais ficcionada. Como foi criada?

Essa cena, com os escravos africanos, na ilha Gora, no Senegal, foi criada pelo realizador soviético Yuri Aldokhin. Nessa altura, tinha apenas 23 anos. Na verdade, toda a equipa era contra a inclusão desta cena. Já não me lembro porquê, mas a Susana disse que era muito boa e que deverei ficar. Pois indica a forma como os soviéticos imaginavam a escravatura. Devo acrescentar que o Yuri Aldokhin foi o único cameraman em 30 anos, de Moscovo, a criar um registo ficcional sobre a escravatura. Os outros mostram apenas lugares com as estátuas de colonizadores, usando voz off a explicar ao público russo o que era a escravatura. O plano com o homem sentado num lugar estranho é único e diz muito sobre as reflexões soviéticas sobre a escravatura nessa altura. Especialmente nos anos 1960.

Como foi o trabalho de investigação com o arquivo? Em que momento entra a produção portuguesa?

Sobre o arquivo tenho de dizer que estou muito grato à diretora do African Film Festival NY, a Mahen Bonetti, minha amiga. Conheci-a em 2006, em Poughkeepsie (perto de Nova Iorque) e acabei por trabalhar também, como investigador, para esse festival. Ela conhecia material de russos filmado em países africanos. Ao longo de sete anos fizemos diversos programas especiais focados em diferentes países africanos. Pensei na ideia em 2011, mas não foi nada fácil encontrar financiamento. Agradeço à Kintop por ter mostrado interesse.

Fale-me do trabalho de arquivo em concreto. O que procurava e o que encontrou?

O arquivo fílmico é vasto, existe muito material de propaganda, mas é algo especial, pois não é realista, é material criado. Às vezes sinto que estou dentro de uma ficção. Eram comissões em que faziam uma espécie de publicidade, na minha opinião. Eles eram quase como turistas nos países africanos. Por vezes tinham cinco dias para filmar, outras duas semanas, às vezes dois meses. Esse era um objectivo da diplomacia russa.

Algo em que a Rússia tem uma grande tradição. 

Sim, eles sabiam como criar todo aquele glamour nos anos 1960, mas também em 1970 e nos anos 1980. E sabiam também como adaptar cada filme às diferentes situações. Fosse amigável ou relações internacionais com países africanos. Esses filmes são um produto especial dos estúdios soviéticos que trabalham de forma muito estreia com a diplomacia.

Red Africa, de Alexander Markov ©direitos reservados

Sim, era uma imagem típica de propaganda…

O problema é que os filmes se parecem muito uns com os outros. São muito semelhantes. Era um problema dramático, mas também para a montagem porque todas as imagens têm o mesmo estilo. Funcionou de uma forma formalista, mas estranho do ponto de vista dramático. Mesmo assim encontrei sequências muito boas com o Brejnev, sobretudo quando ele observa países africanos e o vemos nas ruas a mostrar o seu colonial mood – um mood de soft power. Depois os planos dos soviéticos a cortarem as árvores e a sua satisfação. Ensinam os africanos à sua maneira. Tudo isso parece muito colonial. Isso foi um presente para mim. É uma forma da propaganda se apresentar a si própria. Isso foi bom do ponto de vista dramático.

Podemos dizer que foi essa mesma propaganda que esteve na origem do que se passa hoje com a invasão a Rússia na Ucrânia? 

É uma boa pergunta. Para mim, é claro que o império russo era já uma nação militarista. Completamente militarista. Tal como a União Soviética. A propaganda usa a expressão “Miru Mir” (em russo) que significa “a paz para o mundo”. Portanto, lutamos pela liberdade (risos), ou seja “lutamos” … pela liberdade. É o que diz a propaganda soviética. Agora sabemos que o regime do Putin investiu muito em armamento.

Aparentemente, pouco ou nada mudou…

Neste ponto de vista, nada mudou. A Federação Russa consiste em várias federações pertencentes também ao império soviético, com o centro em Moscovo. Tal como o soft power que vemos em Red Africa. Claro que usam a mesma propaganda. Mas o que é mais importante são as ambições de império que vemos no solo africano. Não foi muito difícil. Venderam armas, treinaram os oficiais, ajudaram as guerrilhas. Algo que parece ser contra o poder colonial, embora tenha o seu lado militarista. Nesse cenário militar da URSS e da Federação Russa e do Império Russo nada mudou no princípio imperialista. Moscovo sabe viver, sabe como controlar as fraquezas deste território. O que percebemos é que este poder militarista foi preparado ao longo de vinte anos. Vemos agora o resultado, completamente agressivo.

A ideia era mostrar todo esse processo até ao colapso da URSS, certo?

Sim, e a esperança da independência da Ucrânia, da Bielorrússia, da Lituânia, da Látvia, da Estónia… Esses países tiveram sorte e são independentes. Mas para a Ucrânia e a Bielorrússia é mais difícil devido à missão da nova Federação Russa, a Federação Russa do Putin. Podemos comparar estas ambição com a História deste território. Um paralelo que podemos criar com a história de Ivan, o Terrível ou outros czares, que foram também completamente militaristas. E encontrar as raízes para a propaganda no século XX, durante a 1ª GM, mas também a 2ª GM. É claro que estou apenas a pensar na União Soviética e na forma como colapsou. Este contraste entre o paraíso socialista africano e a queda a União Soviética. Aqui vemos a forma da manipulação da propaganda, a forma como gostam de ser vistos. Vemos o que criaram num filme soviético. A verdade mostra outro quadro da vida, outros quadros da vida.

Paulo Portugal

[Foto em destaque: Alexander Markov na Nazaré]

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