Quarta-feira, Outubro 9, 2024
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Campo de Sangue: O ato de criação e o combate dos monstros

Com a recompensa que recebeu pelo seu pecado, Judas comprou um campo. Ali caiu de cabeça, seu corpo partiu-se ao meio, e as suas vísceras se derramaram.
Todos em Jerusalém ficaram sabendo disso, de modo que, na língua deles, esse campo passou a chamar-se Aceldama, isto é, Campo de Sangue.

(Atos 1:18,19)

 

Esta primavera parece ser de boa colheita para o percurso cinematográfico do cineasta João Mário Grilo. Depois da estreia de Vierarpad, um documentário baseado nas cartas entre a pintora Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e o companheiro húngaro Árpád Szenes (1897-1985), eis que chega esta semana às salas Campo de Sangue, um filme com distribuição da Leopardo Filmes, inspirado no romance de estreia de Dulce Maria Cardoso, publicado há precisamente duas décadas, em 2002. Além do invulgar encontro de dois filmes de um cineasta português em exibição nas salas de cinema, é curioso verificar as relações que se estabelecem entre o autor e a sua obra, ou as suas personagens, bem como o efeito que retira do tempo.

Tanto Maria Helena Vieira da Silva como Árpád Szenes conseguiram encontrar esse raro equilíbrio entre a vida artística e o cotidiano familiar. Cada um cresceu e desenvolveu a sua pintura com a ajuda do outro sem qualquer tipo de ciúme ou competição. E de certa forma acabaram por ser um elemento performativo um do outro. Até porque é importante que a criatura não troque o seu papel, pois mesmo a mais ténue traição será fatal. Não foi isso que aconteceu com Judas Iscariotes, um dos discípulos de Cristo? Ou até como sucede em Campo de Sangue, justamente baseado nessa parábola bíblica, onde os limites entre a realidade e a ficção, uma personagem de ficção supera até o seu próprio criador.
No novo filme de João Mário Grilo existe uma caução de responsabilidade entre o autor e o auditório, bem como as suas criaturas. Mas em que o autor sempre tem a escolha de optar pelo o lado divino ou uma dimensão mais monstruosa. E em que cada pequeno passo acaba por contribuir para o destino final. Aqui encontramos um homem acusado de um crime (Carloto Cotta) e quatro mulheres: a mãe (Fernanda Neves), a ex-mulher (Suzana Borges), a senhoria (Teresa Madruga) e uma rapariga bonita (Sara Carinhas) que está grávida dele. Todas com as suas indiferenças, as suas ganâncias e os seus desejos fizeram possível o crime que aconteceu.

A rapariga não tem nome. A ex-mulher é a Eva, a primeira mulher criada por Deus, culpada pela Queda do Homem; a mesma que causou o pecado original e a expulsão do Éden. Será o rapaz como a rapariga bonita que não tem nome seres caídos do céu? A mãe e a senhoria chamam-se Odete e Preciosa respetivamente. Ambos os nomes se referem à riqueza, mas a questão é que tipo da riqueza está em causa? A mãe que mora num bairro social, vê programas religiosos na televisão, mas ao mesmo tempo não tem aquele toque doce de amor materno que qualquer mãe deve ter e de uma certa forma abandona o seu filho como foi abandonado Judas Iscariotes. A D. Preciosa pensa em dinheiro, mas contenta-se com pequenos valores sem pensar muito na ética. Nesse ambiente tão sufocante um jovem não encontra nenhum ponto de referência, não encontra o seu cais e enlouquece.

Luísa Cruz e Carloto Cotta, em Campo de Sangue (Foto: Leopardo Filmes)

Mas a mulher principal não está entre aquelas três, a mulher principal na vida do jovem é a escritora Dulce que lhe deixa enlouquecer, que não lhe dá nenhuma luz no fim do túnel. Ela é que está sempre presente quando o jovem se encontra com a ex-mulher, com a mãe, com a senhoria e com a rapariga. É uma espécie de mise en abyme, sobretudo quando a escritora cria a sua personagem principal através das outras personagens. É a autora que constrói uma prisão amarga de solidão cheia da indiferença da mãe, da ganância da D. Preciosa e da brincadeira perigosa da rapariga bonita permitindo-lhes enganar o homem e levá-lo ao crime. Por sua vez o crime leva o para a prisão verdadeira lembrando-nos o filme de João Mário Grilo, o drama psicológico Longe da Vista (1998) que também acontece na prisão com a melancolia e a solidão.

Nesses pensamentos releva ainda o conceito do tempo: o tempo que passa, o tempo que envelhece, o tempo que nunca volta. A ex-mulher nunca voltará a ser jovem e bonita, a mãe nunca poderá criar o filho de outra maneira, o crime nunca será esquecido. Na sua fuga do tempo as personagens perdem-no ainda mais, ficando com mais medo e arrependimento. Esse medo é uma metáfora da vida artística, pois qualquer criador sempre tem o dilema de Fausto, fazer ou não fazer um acordo com Mefistófeles, sabendo que o momento mais valioso nunca durará para sempre. O espectador está a sentir quase fisicamente a passagem do tempo através do ritmo de fala e de movimentos das personagens, através do ritmo do próprio filme.

No Campo de Sangue o realizador volta a explorar alguns assuntos nos quais já tinha tocado antes. Por exemplo, ao explorar a natureza do crime em O Fim do Mundo – A Terra (1993), bem como em Duas Mulheres (2009); e abordou a ideia de traição nos Olhos da Ásia (1996). No novo filme a traição acontece dos dois lados: do lado da personagem que começa a ser mais forte do que o seu criador, e do lado do autor que tendo nas suas mãos a vida da personagem resolve não lhe ajudar.

Assim, acontecem dois crimes – um escrito no romance e o outro nas relações entre o demiurgo e a sua criatura. A luta final que é a todos os níveis brutal. Uma cena no estilo do teatro de sombras, a arte antiga da China, e a fachada da casa faz o papel de palco. O estilo do teatro de sombras não é escolhido por acaso, pois a casa da escritora tem uma decoração em estilo oriental, aliás, como ela própria, lançando uma ideia de diálogo entre o Oriente e o Ocidente, de resto já abordada pelo cineasta em Os Olhos da Ásia. Na ligação da autora com a personagem o realizador faz a referência ao filme A Noiva de Frankenstein (1935) de James Whale. Pois na novela de Mary Shelley o monstro de Frankenstein não tem nome, é variadamente referido como «criatura», «desgraçado», «coisa», «ser». Como sabemos, o homem jovem no romance de Dulce Maria Cardoso é Ele. Só que no Frankenstein a criatura monstruosa, triste e assustada, feita contra a sua própria vontade fica vencida. No Campo de Sangue o monstro está perdido, mas vence para se entregar sozinho ao Juízo Final. Carloto Cotta, um dos melhores atores portugueses, traz a tristeza de Boris Karloff, mostra o medo perante a realidade e cria uma personagem que evoca empatia. Ao mesmo tempo é uma personagem que reflete muito os nossos tempos: um jovem bonito com bastante potencial, mas que não trabalha, não tem amigos e tem demasiado tempo livre que o permite flutuar sem objetivos e que finalmente o destrói.

O ‘monstro’ Carloto Cotta (foto: Leopardo Filmes)

A pensar nas relações entre o autor e a sua criatura, João Mário Grilo tem de resolver a mesma questão, tem de escolher o caminho certo para as personagens criadas por ele no filme. O realizador resolve isso de uma maneira virtuosa com uma reverência a Dante com a sua Comédia Divina (1304 – 1321) onde Lúcifer tortura os traidores, dos quais o maior é Judas Iscariotes. Assim, enquanto no filme a escritora perde na luta com os monstros, por sua vez João Mário Grilo consegue derrotá-los a todos.

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