Na sua apresentação em Bolonha, o investigador Emilliano Morreale recordou que esta cópia restaurada em 2014 pela Imagine Ritrovata foi exibida no festival de Veneza, onde ganhou um prémio do melhor restauro por se tratar “de um restauro muito particular”, pois o trabalho realizado na cópia de 1977, que passou em Cannes, “tinha já as cores muito saturadas, quase preto e branco”. Além de que já não existiam máquinas para a revelação e reprodução daqueles tons sépia. Seria até o próprio Scola, antes de morrer, a revelar quais as cores que iriam servir de referência – das poucas que o filme exibe, além do vermelho escuro (tipo sangue) de uma bandeira nazi, as flores na varanda do apartamento de Sophia Loren e o tom numa camisola de Mastroianni eram as únicas referências de cores verdadeiras.
Tarkovsky Jr. fala sobre ‘Nostalgia’
Seguramente, o monumento intitulado Nostalgia, o penúltimo filme de Andrei Tarkovsky, é um outro exemplo marcante na programação deste ano do Cinema Ritrovato. Talvez por nos fazer aproximar de uma realidade de certa forma coincidente com a de hoje. “Tu não compreendes nada sobre a Rússia”, refere na abertura do filme Oleg Yankovsky. É um pouco essa Rússia “nostálgica e esotérica”, como refere Alberto Anile no catálogo, que 40 anos mais tarde nos “continua a lançar novos desafios para a decifrar”. A história do poeta russo (Yankovsky) em Itália à procura de um antigo músico russo, separado da família e da sua pátria, com uma relação de indiferença com a sua interprete (Domiziana Giordano), continua a afirmar-se como um “hino à vida, à poesia e ao amor”. Mas que escuta com a maior atenção a voz atormentada do ‘louco’ Domenico (Erland Josephson, um dos grandes actores de Bergman), reservando-lhe a longuíssima e serena final num memorável travelling.
O filho do cineasta, Andrei Tarkovsky, presente em Bolonha (e autor do documentário biográfico Andrey Tarkovsky. A Cinema Prayer (2019), comentou o trabalho do progenitor. Ele que tinha sete anos quando o pai filmou Nostalgia, Um projecto que nasceu em 1976, com o pai e o argumentista Tonino Guerra (autor do guião), implicado também na tentativa de co-produção entre a Itália e a URSS, embora com muitas reticências soviéticas. Sobretudo, segundo, explicou Andrey “porque tinham medo porque sabiam que o meu pai fazia um cinema muito particular e não aceitava compromissos”, de resto em que “os temas da espiritualidade e religião eram contrários à ideologia marxista soviética”. Mesmo apesar de Andrey Rubliov, como se sabe um filme fortemente espiritual, cuja versão do realizador (director’s cut) estar agora a ser restaurado em 4k, segundo informou Tarkovksy Jr.
A ideia base para o filme seria uma docu-ficção, uma espécie de ‘viagem em Itália’, como o próprio descreveu em Bolonha. Aliás, um projecto que supriria de alguma forma a uma impossibilidade de fazer um filme sobre Dostoyevsky.
O restauro da cópia e da banda sonora foi feito a partir de uma cópia de 35mm que o próprio Tarkovsky, em caso de destruição ou dano do original. Material conservado até agora pela RAI Cinema que permitiu o restauro em 4K pela Cineteca nazionale, devidamente supervisionado pelo director de fotografia Giuseppe Lanci.
O nascimento dos movimentos fascistas
Mesmo tratando-se de um festival fortemente ancorado no passado, o festival liderado por Gian Luca Farinelli não deixou de sinalizar um presente marcado por um regresso a uma impensável guerra na Europa acentuada por um estilo de tiques fascistas de uma memória que evoca o pior da nossa História. De resto, é a própria História que se trata de sinalizar esse momento, ao recordar-nos que foi precisamente há 100 anos que surgiram os primeiros movimentos fascistas, ilustrados por jornais de actualidades da época mostrando a marcha fascista sobre Roma, bem como a tomada de poder de Mussolini.
Destaque para o filme centenário, e muito corajoso, do sueco Carl Theodor Dreyer (Amai-vos uns Aos Outros/Die Gezeichneten) sublinhando o seu anti-semitismo e os pogroms na Rússia. Um filme em que se nota bem a autenticidade procurada por Dreyer para ilustrar a realidade judaica, ele que fora um severo inimigo do anti-semitismo. O filme esteve perdido durante inúmeros anos, até 1960, quando é descoberta uma cópia em nitrato na Rússia (curiosamente intitulada Pogrom). Em 2005 foi feita uma nova duplicação do nitrato (graças a Bernard Eisenschitz) do qual foi feita um scan em 2K e recuperados os intertítulos desta complexa narrativa.
Vimos ainda, integrado na secção Cento anni fa (Foi há 100 anos) diversos filmes de jornais de actualidades, em filmes de por vezes apenas um minuto (ou menos) que se documentam esses movimentos. É o caso das imagens impressionantes de Marche sur Rome, mas também Apothéose fasciste ou ainda Manifestation des fascistes défilé devant le roi; o programa incluía ainda Irlande autor du palais de justice de Dublin e La Turquie.
Sim, este foi a todos os níveis um dia verdadeiramente inesquecível.