Quarta-feira, Outubro 9, 2024
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David Cronenberg recebe prémio Donostia: “Espero cometer mais crimes no futuro”

O cineasta canadiano, autor de uma verdadeira atracção voyeuristica pelas mutações do corpo e as maleitas da alma, veio a San Sebastian receber o prestigiado Prémio Donostia, homenageando a sua capacidade de traduzir de forma cinematográfica toda essa catarse em que o futuro se intromete num presente incerto, ao mesmo tempo que produz uma multiplicidade de sensações contraditórias. Talvez o exemplo mais concreto seja mesmo o seu mais recente filme, Crimes of the Future, apresentado em estreia mundial no passado festival de Cannes. Na verdade, o próprio filme motiva o prémio, pois pressente-se aqui uma certa reavaliação da sua própria carreira. Quase como se de um filme de tese se tratasse. Até pelo facto de repescar um título seu filmado há quase 50 anos, ou seja, Crimes of the Future, de 1970.

David Cronenberg e Gaspar Noé (Foto: Ulises Proust).

“Tenho tido a felicidade de ter recebido alguns prémios. Mas a verdade é que também faço filmes há cerca de 50 anos”, confessou o cineasta canadiano no dia em que recebeu esse prémio das mãos do cineasta Gaspar Noé. “É sempre bom ver o nosso trabalho reconhecido, especialmente num lugar como Donostia, com um passado cultural e artístico tão profundo. Encoraja-me para continuar no futuro.”

E por falar no futuro… David Cronenberg justificou o facto de não ter auricular para escutar a tradução. “Tive recentemente uma operação às cataratas. Tenho lentes novas nos olhos, bem como um dispositivo que me ajuda a ouvir. Tudo desenvolvimentos tecnológicos.” Algo que o levou à seguinte conclusão: “Sou um ser biónico. Sou o futuro.“

Regressando ao filme, o cineasta canadiano de 79 anos confessou que escreveu o guião há 20 anos. E por falar e escrever, David assumiu mesmo, quando era jovem, que iria ser um romancista. Como o seu pai. E não um cineasta. “Pensei que escreveria o meu primeiro livro após 20 anos, mas acabou por ser 50 anos depois”. O resultado foi Consumed, a sua recente estreia como autor, envolvendo dois jornalistas numa trama surreal de conspiração global.

A verdade é que, como confessa, “fui raptado pelo cinema.” Sim, o cinema como forma de experimentação em conjunto. Algo que nos sugere impulsos. “Sou eu que me levo ao limite”, diz. “E convido o público para vir comigo e ter a mesma experiência.” E cita até um mestre: “Há muitos anos, Alfred Hitchcock falou sobre o público e disse que ele era o bonecreiro e que manipularia o público para obter diferentes sensações. Controlaria tudo. Eu não consigo, porque tenho a experiência daquilo que crio à medida que crio. É uma viagem de criação explorando a minha relação com o mundo.”

Crimes of the Future

Ainda assim, revela algum cepticismo quando confrontado com a capacidade da Humanidade poder corrigir tudo aquilo que foi destruindo. “Na verdade, tenho as minhas dúvidas. Desde que tenhamos a vontade de o corrigir, acho que poderemos.” Mesmo que isso não seja suficiente. E é a actualidade que nos diz. “Só que temos loucuras, como a guerra na Ucrânia. Eventos como esses, a par das alterações climáticas, que foram motivadas pela actividade humana, temos também esse impulso incontrolável de destruir. É um problema muito sério. Não tenho a resposta e devo dizer que não estou muito optimista.”

A fechar invocou ainda a curiosa comparação da importância do poder da arte como forma de criação, comparando-a até como ao acto de um crime: “Há algum tempo fiz um discurso sobre o crime da arte, em que a arte teria um certo sentido criminoso. De certa forma, os artistas seriam criminosos. O meu argumento baseia-se numa ideia de Freud, argumentando que a civilização é uma forma de repressão. É que para termos civilização temos de reprimir certos sentimentos, como matar, violar, etc. Nós lemos sobre isto todos os dias nos jornais, embora a maior parte de nós não o faça. Temos uma sociedade que nos faz estarmos em conjunto sem nos matarmos uns aos outros. O apelo à arte é ao subconsciente, a essas partes de nós subconscientes, primitivas e destrutíveis. Dessa forma, nós, artistas, exploramos essas coisas que estão escondidas, são proibidas, que actuam na sociedade, mas que devem ser compreendidas. E devem ser expressas. Nesse sentido, a atracção do cinema é sobre o proibido. Como o sexo em tempos de repressão em que não deveria ser mostrado no ecrã ou outros impulsos mais obscuros, como os que vemos em Crimes of the Future. Nesse sentido espero cometer mais crimes no futuro. Ou seja, fazer mais filmes.” Assim esperamos.

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