Terça-feira, Outubro 8, 2024
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DocLisboa: Godard Cinema – Um cineasta à parte

Visto agora na secção Heratbeat do DocLisboa, precisamente um mês depois da sua morte, o documentário Godard, Seul le Cinema, ou Godard Cinema, dificilmente escapa a uma certa dimensão elegíaca. Concebido por Cyril Leuthy para fixar o 90º aniversário, esta imensa História do Cinema de JLG passará a funcionar como derradeiro acto de resistência, em que aquela voz rouca começa por nos lançar um derradeiro aforismo e prognóstico: “Há muito tempo que não faço parte da distribuição, por isso não estou onde pensam que ainda estou”. Uma frase de resto marcada pela decisão do seu derradeiro ‘coupez!’ que selou com uma morte assistida o filme da vida deste ser teimoso que optou por encarar o cinema a partir de um lugar de desconforto.

Se virmos bem, o título Seul, le Cinéma, diz quase tudo. Na verdade, o cinema é suficiente. Porque Godard foi/é apenas Cinema. Nessa medida, esta biografia documentada é suficientemente rica ao traçar o percurso de uma obra cinematográfica devidamente comentada por diversas personalidades, como os críticos Thierry Jousse, Antoine Baecque ou Alain Bergala, bem como Daniel Cohn-Bendit, o líder estudantil das revoltas de Maio 68, as actrizes Julie Delpy, Hannah Schygulla, Marcha Méril, Marina Vlady, entre outros amigos.

“Godard é uma lenda, mas esquecemo-nos do homem”. É um pouco essa abertura ao ambiente dessa criatura infernal em acção que permite compreender a incessante procura criativa alimentada por um inefável espírito de contradição que lhe permitiu assinar mais de 130 filmes feitos de utopia e resistência.

Esse espírito é logo assumido após A bout de souffle/O Acossado (1960), quando JLG preparava Le Petit Soldat/O Soldado das Sombras (1963), e declara para a câmara: “Tenho a impressão de amar menos o cinema do que há um ano atrás, apenas porque fiz um filme que agradou; espero então que o meu segundo filme possa desagradar toda a gente e que isso me dê vontade de voltar a fazer cinema”. É talvez isso que Alain Bergala sublinhe quando cita Godard: “Não temos o direito de partir da harmonia, temos de partir do caos”. Ou seja pas de création sans destruction!

Em imagens pouco vistas, um sorridente Jean-Paul Belmondo comenta para a câmara como Jean-Luc lhe deu apenas três folhas do guião de A bout de souffle, ou a actriz Marina Vlady exemplificou o método de trabalho de Godard (e não só em Deux ou trois choses que je sais d’elle/Duias ou três coisas que eu sei dela, 1967) com os actores na rodagem a repetirem o que lhes era segredado através de um auricular. Não era ele que afirma ser “um pintor que faz literatura ou que faz literatura com pintura”?

Seul le cinéma principia com o belíssimo sol mediterrâneo de excertos de rodagem de Le Mepris/O Desprezo (1963), com Godard a Fritz Lang em ação, ou os desarranjos de uma relação se misturam com a adaptação para cinema da Odisseia de Homero. Veremos ainda o pai, Paul Godard, a sublinhar a herança intelectual e literária da família, mas a mesma que o renegou e proibiu de assistir ao fiuneral da mãe, vítima de um acidente de automóvel, por o filho de 20 anos ter roubado dinheiro ao tipo para fazer um filme com Rivette (Le Quadrille, 1950).

Naturalmente, as três mulheres da sua vida. Primeiro, a descoberta do olhar de Anna Karina num spot publicitário de sabão, que depressa se tornou no ‘rosto da nouvelle vague’, ou depois Mia Wiazemsky, a neta do nobel francês da literatura, François Mauriac, depois de entrar em Au Hasard Balthazar, de Robert Bresson com apenas 18 anos. Haveria de subir a bordo e embarcar na vertente mas revolucionária e maoista em 1967, em que faria La Chinoise/O Maoísta, Longe do Vietname e Weekend/Fim-de-semana, ou a militância colectiva do grupo Vertov, já com Edgar Gorin. Por fim, a relação mais consistente com Anne-Marie Miélville, desde o início dos anos 70 até ao final da vida dele. Já incorporando o novo renascimento do seu cinema, de volta à terra da sua infância, em Rolle, na Suíça, onde no seu estúdio haveria de criar um novo cinema, feito de sopa, imagem e palavras. E de tempo. Tantas vezes a partir de imagens gastas de video cassetes usadas que pedia aos amigos.

Será aí que transformará a casa num verdadeiro estúdio para fazer o seu cinema a solo. Sobretudo marcado pela sua tremenda Histoire(s) du Cinéma, em que ao longo de uma década (de 1989 a 1999) faz a sua própria crónica do cinema, bem como Livre d’images/O Livro de Imagem (2018) com que fecha a sua tremenda história. E é como ele diz, “não é preciso compreender tudo… Para não fechar a janela”.

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