Talvez muitos de nós não esperassem de Sérgio Tréfaut um filme sobre uma noiva do Daesh. Ainda que ‘esperar’ o que quer que seja deste cineasta demasiado habituado a seguir o seu impulso, seja um gesto, no mínimo, infrutífero. Poder-se-á até referir que Tréfaut passou, quase literalmente, de um Paraíso ao ‘inferno’ no Iraque e do Daesh, com este A Noiva, exibido na secção Horizontes do festival de Veneza, em Setembro passado. No entanto, também isso seria apenas um jogo de palavras. Por isso, a sugestão é mesmo atentar na sua exposição clara, imediata e tão esclarecedora. Porque diante das suas respostas plenas, as perguntas tornam-se menos relevantes.
Nada irrelevante é o seu percurso, de resto multipremiado em vários festivais. Desde logo, no IndieLisboa, vencedor por três vezes do prémio principal de Melhor Filme Português: foi assim com Lisboetas (2004), Alentejo, Alentejo (2014), vencedor ainda do Melhor Documentário, e Treblinka (2016); entre outros festivais nacionais e estrangeiros.
Assim segue um texto quase todo baseado nas palavras de Sérgio Tréfaut, durante a nossa saborosa conversa no foyer do Cinema Nimas, em Lisboa. Agora, há um filme que é necessário ver. E que supera, em larga medida, muito daquilo que fomos lendo, ouvindo e lendo sobre o assunto. Sim, e há uma Joana Bernardo que é um inesperado portento.
Estamos no Iraque após a queda do Estado Islâmico. É tempo de cuidar das vítimas – mulheres e crianças – e julgar os crimes. O filme abre com um tom gráfico muito bonito, em que uma mulher de hijab (o traje negro que a cobre com excepção dos olhos) vai tingindo (de negro) a sua veste numa bacia de água quente; estende aquele longo manto negro, que contrasta com o tom claro da tenda de campanha onde pernoita com ouras mulheres e filhos. Uma delas (Joana), visivelmente grávida, irá testemunhar a execução do marido (ou pelo menos do último marido). A câmara fixa-se na expressão dos enormes olhos verdes enquadrados pelo negro, quase como se fossem um ecrã de cinema. A leitura é dada pelos comandos que escutamos ordenando uma mão cheia de penas capitais por fuzilamento. Quando a cena termina, nós já estamos apresentados A Noiva. Não é necessário explicar mais.
Se calhar, este era um filme que tinha de ser… “Porque as coisas que são um pouco repetidas, aborrecem-me sempre”. Lamenta-se assim o realizador de 57 anos, diante alguma surpresa que pudesse existir em redor deste seu regresso (impuro) à ficção.
‘Impuro’, porque que com Tréfaut a ficção estará sempre impregnada por uma realidade demasiado próxima do documental. Até porque “se não me lançarem um desafio, as coisas não têm graça”.
Qual será então a génese de A Noiva, poderemos então interrogar-nos. Passa, segundo nos conta o autor, em grande parte, pelo que ficou da experiência do documentário que fez sobre os cemitérios do Cairo (A Cidade dos Mortos, 2009), que o fez mergulhar no universo islâmico durante quatro anos. Foi aí que aprendeu árabe, também durante o seu périplo por diversos festivais da zona, como Dubai, Amã ou Cairo. Aliás, revela-nos, que durante a rodagem de Lisboetas (2004) também tinha frequentado várias mesquitas.
Acontece que, quando o filme foi mostrado no Iraque – no mesmo ano (2012) em que mostrou também Viagem a Portugal (2011), como nos confirma – nasceu também uma certa paixão pelo país. Exactamente, no momento em que as tropas norte americanas se retiravam do terreno. “Eu acompanhei alguns jornalistas americanos quando se instalaram no Iraque, com uma espécie de promessa utópica e de impostura absoluta, dizendo que, com a imprensa livre, o país entraria num regime democrático e de paz. Só que isso foi tudo o que menos aconteceu”.
O que aconteceu foi o surgimento de centenas de órgãos de comunicação, financiados por vários países da proximidade. “Mas que não acabaram com a violência. Nas duas vezes que fui a Bagdade explodiam bombas matando cem a 150 pessoas num dia, isso era o assunto do dia, mas no dia seguinte não era assunto para ninguém”. Por isso quis fazer um filme sobre essa ‘impostura’ do discurso americano que ficou ‘engasgado’ enquanto projecto por causa do advento do Estado Islâmico. Isto porque Mossul, onde eu tinha estado, em 2014, tinha-se tornado na capital do Estado Islâmico”. Algo que acabou por gorar esse projecto, direcionando a sua curiosidade para o fenómeno dos europeus que se radicalizavam, bem como os segundos descendentes de emigração islâmica que queriam encontrar raízes.
“Isso deixou-me fascinado e decidi fazer um filme sobre essa juventude”. No entanto, como confessa, fazer um documentário “era impossível”. Mesmo que falar da realidade integre a vitalidade que corre nas suas veias do cinema. Uma investigação complementada por conversas com os jornalistas portugueses que acompanharam de perto o caso – como a Raquel Moleiro e o Hugo Franco, do Expresso – e que tinham até “comunicação via Facebook com os principais visados e que muitos deles já morreram. No entanto “havia algo muito perverso na imprensa daquele momento – 2014-15 -, em que essas pessoas se tinham quase transformado em personagens de novela”, como o Fábio Poças, a Ângela Barreto, os irmãos da Linha de Sintra que tinham ido jogar futebol. “Eu, encantado com tudo isso, escrevi uma primeira versão de treatment e argumento, em que a ideia era seguir o percurso desses jovens da Linha de Sintra. O que eu tinha escrito era muito inspirado nisso”.
A escolha de Joana Bernardo aparecerá muito depois, como confirma Tréfaut, com um sorriso de modo a não desligar o flow ininterrupto da sua pormenorizada descrição.
Com o argumento quase pronto, depois de ler as biografias do Jihadi John, e até de conhecer um dos seus sobreviventes, um jornalista catalão, acontece a queda de Mossul. De repente, percebe que “o material que tenho parece um biopic da Netflix”.
Encontrará entretanto uma linha narrativa a partir desse ambiente de mistério e reflexão ocorrido com a queda do Estado Islâmico, bem como o assunto das viúvas, muitas delas europeias, e dos 500.00 órfãos do Estado Islâmico. A alternativa foi rápida: “escrevi um argumento em três semanas, quase em contraposto do que via na imprensa.” É que, ao contrário do sentido sensacionalista da imprensa, a Sérgio Tréfaut interessava algo diferente: “O que está na cabeça de uma menina que deixa a família aos 17 anos, que fugiu de casa e casou com um senhor guerrilheiro, de quem teve dois filhos? E que passou de marido para marido e está grávida de um terceiro?”
Longe do Paraíso
Sim, decididamente, o Paraíso ficou para trás. Ainda que tivesse tido uma gestação muito próxima. “Eu tinha um projecto de fazer um filme no Brasil desde 2014-15. Eu ia para o Brasil morar. Acabou por haver algum overlapping entre os dois. “Uma espécie de intervalo entre o Paraíso e o Inferno”, como diz a rir.
Apresentei o guião de A Noiva, em Novembro de 2018, e instalei-me no Brasil logo a seguir, em Dezembro. O filme foi financiado, mas ao mesmo tempo que continuava a preparar o Paraíso, que iria filmar em 2019. No final do ano, estive novamente no Iraque, já com financiamento do ICA garantido, visitando os últimos campos de prisioneiros do Estado Islâmico. Eu não filmei em campos de prisioneiros, mas em campos de refugiados, que são iguais. Mas quis conhecer as prisões, algumas não tive acesso, mas quis conhecer a realidade, falar com outras pessoas”.
É claro que a presença da Joana Bernardo é genial, apesar do risco enorme de depositar numa jovem o peso dessa experiência. “Poderia até ter estragado o filme”, como refere. Apesar de tudo, tratou-se de uma escolha unânime. “Ela tinha 20 anos e nunca tinha feito nada”, diz. E corrige-nos quando revela que não tinha qualquer conhecimento da língua árabe que no filme usa com muita naturalidade: “nem francês ela fala!”. Joana Bernardo foi uma das 150 candidatas que responderam ao casting em Novembro de 2020, com material fotográfico e vídeo. Esta aluna do Conservatório acabaria por passar na selecção de 40 candidatas, justamente em duas cenas: primeiro, numa das cenas mais intensas do filme, quando fala com o pai (Hugo Bentes), ele próprio radicalizado; a outra é a cena marcante no início em que assiste à execução do ‘marido’. Uma cena brutal quase toda dominada pelo jogo de olhar.
Além disso, cumpre com rara naturalidade o seu papel de ‘mãe’. É “muito comovente vê-la com o bebé nos braços”, como recorda Tréfaut. “Ao mesmo tempo muito perturbadora, porque apesar dos seus 20 anos, às vezes parecia que tinha 14. Com uma doçura e uma infantilidade tocantes.” Talvez esta seja uma das razões pelas quais esta ‘Noiva’ nos prende. “Eu fiquei convencido com o lado rigoroso, sério, voluntarioso sim, sem ser disparatado. Outras meninas eram muito belas e fotogénicas, mas sem aquela fragilidade infantil que nos dizia que ela poderia ser tudo”. Claro que teve de ultrapassar bastantes adversidades, como instalar-se em campos de refugiados durante três dias, para morar na casa das crianças. E surpreendeu pela sua capacidade de aprender árabe e francês, o que denota a sua dedicação. Como confere Sérgio Trefaut: “A Joana não tem o perfil de starlet, mas não precisava de fazer nada para ser convincente. E era ainda muito versátil, podendo fazer a mesma coisa de várias maneiras. E tinha uma capacidade de memorização alucinante. Algo que a fez ser adoptada pelas pessoas locais. Chamavam-lhe a ‘bochechuda’!”
Percebe-se que Tréfaut queria colocar o espectador “perante o mistério daquela personagem”. E sugere até a comparação: “Por exemplo, a Catherine Deneuve, desculpa a comparação tão gigante, no Belle de Jour, ninguém explica porque ela vai para uma casa de putas. Ela vai porque vai. O mundo é assim. As coisas não têm de ter uma ‘explicaçãozinha’. Eu queria colocar o espectador perante aquela mulher, aquela menina que nos surpreende”.
Olhando para a filmografia de Sérgio Tréfaut, será fácil traçar um perfil de uma personagem que vive num terreno de fronteira, entre mundos e conflitos. “Há uma coisa que é comum a todos os meus filmes, que não é uma questão de capricho ou maneirismo. Eu vivo realmente entre esses universos. Cresci entre esses universos. É raro o filme que fiz numa única língua – na verdade três: O Raiva, Alentejo, Alentejo e Paraíso. Todos os outros são feitos em várias línguas, uma misturada total.”
Mas voltemos à Noiva e ao final em que se revela que nenhuma mulher foi condenada em tribunal iraquiano. “Isso é verdade”, confirma. “No entanto, o posicionamento europeu, e isso implica Portugal, foi uma espécie de lavar as mãos à Pilatos, sem resolver o assunto. Algo que tem o perigo muito evidente – o filme fala disso subliminarmente – de que aquelas crianças sejam futuros radicais. Porque ninguém quis saber delas. Em vários países coloca-se essa questão: de saber como se neutraliza o radicalismo que essas crianças poderão ter dentro delas. É uma realidade muito real hoje no Iraque, onde os sociólogos falam das crianças e das mães que estão em pequenas aldeias, mas que são rejeitadas e que nem sequer têm acesso à escola. É todo um futuro que é um ninho de radicalismo.”
Uma palavra ainda para abordar (mais um) trabalho exemplar com o director de fotografia João Ribeiro: “Eu fiz com o João uns quatro documentários juntos; fizemos um filme que era meio caminho entre o documentário e a ficção, que é o Treblinka (2016). Esta foi a primeira vez que trabalhamos em ficção. Foi um desafio para um e para outro. Foi um desafio, mais do que outra coisa. A minha relação com o João é mais com o documentário. Neste filme a cena que corresponde mais ou menos ao trabalho que faz habitualmente comigo é a cena em que filma as crianças com os pneus, e ele vai com a câmara à mão a correr atrás dele; isso é João Ribeiro absoluto. No registo mais de ficção foi algo novo para o nosso trabalho em conjunto”.
Por fim, o desejo indómito de fazer: “Sim, tenho muitos filmes para fazer. Mas, mais filmes de reflexão. Tenho um no Brasil sobre a questão do património no século XX. Mas tenho um projecto que tem a ver com a reapropriação da História, sobre o Bolívar, entre a Venezuela e a Colômbia, e a maneira como uma personagem é apropriada por todas as forças políticas diferentes para se proclamarem herdeiros dele. É um filme que terminará na Rússia, na Ucrânia, nos países do Cáucaso, que ainda estou à procura do melhor caminho. Isto sem contar que tenho uma vontade desesperada de escrever uma ficção.”
“O Brasil está em guerra civil permanente”
Transcreve-se apenas a resposta à intenção de colocar na agenda da nossa conversa as recentes mudanças políticas e sociais no Brasil. E porque o tema ‘radicalização’ vinha em sequência. Diz o Sérgio assim:
“Paulo, eu não sou militante. Eu escrevi não sei quantos textos muito engajados na luta contra o Bolsonaro – porque lutar contra um criminoso e contra um monstro não é sequer uma coisa de militância. Há um alívio muito grande com o que aconteceu. Toda a gente ficou muito comovida com a tomada de posse do Lula e a forma encenada e bela como isso aconteceu. Mas eu sou de ir ver para crer. Ou seja, eu acho que os obstáculos vão surgir por todo o lado; mas, por outro lado ainda, a dimensão da transformação do Brasil não é apenas resgatar os erros do Bolsonaro; não é apenas voltar atrás nos crimes do Bolsonaro.
Um dos projectos que eu tenho de cinema no Brasil é um projecto que fala da História do Brasil, da relação do património em relação ao século XX, em que a destruição não foi nos últimos quatro anos; é muito anterior. Há toda uma ideologia que vem da ideia de Brasil, País de Futuro, em que o desenvolvimentismo a qualquer preço é defendido por Getúlio Vargas, pelos militares; a Dilma era uma presidente que fazia com que a economia tivesse um lugar de supremacia sobre muitas outras coisas.
Houve escolhas relativamente à Amazónia que foram graves. Eu não sou clubista; claro que choro e me comovo com o que acontece no Brasil. Não sei como se vai conseguir ultrapassar o obscurantismo religioso. Ao lado do obscurantismo, os terraplanistas, essas coisas todas, que são tão fortes.
Depois, aquela coisa que é mais grave do ponto de vista da vida, que é a guerra civil permanente. O Brasil está em guerra civil permanente. Os Estados Unidos fizeram um barulho enorme quando foi o assassinato do George Floyd, mas isso é uma coisa que acontece no Brasil. Todos os dias, ao longo do ano, há Georges Floyds. Há mais do que 365 Georges Floyds por ano no Brasil. Há milhares de pessoas pobres e negras que são assassinadas pela polícia, por uma polícia assassina. E sem qualquer julgamento. Uma polícia que é impune e um acesso fácil a armamento é uma das questões por resolver.
Só para voltar à Noiva, quando eu fui para o Iraque, as pessoas ficavam preocupadas com os riscos que eu iria correr, a violência, etc. Mas o Curdistão é muito mais tranquilo à meia noite do que o Rio de Janeiro! Eu ou uma menina podem andar na rua sem qualquer problema! As pessoas vivem com esse medo no Rio de Janeiro, mas algo que não acontece no Iraque. Eu gostaria muito que as coisas se transformassem, mas não sei como.