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‘Margot’ ou o espaço de reconstituição da memória

Margot é um filme que nos coloca diante do valor da investigação histórica e antropológica, ao mesmo tempo que convoca o espaço próprio do investigador. No caso, foca-se na pianista e etnomusicóloga alemã Margot Dias (1909-2001), ao renegar a vida burguesa na Alemanha, no final dos anos 50, pela cultura e expressão artística da minoria étnica moçambicana Maconde, no topo norte de Moçambique (hoje um território assaltado pela violência). Isto, em pleno período do apogeu colonial. Depois de uma vintena de documentários, realizados entre 1992 e 2019, a antropóloga e documentarista Catarina Alves Costa encontrou igualmente o seu espaço, em Margot. No fundo, uma investigação que tem muito de si, do que é ser mulher, investigadora, realizadora. Margot é, por isso mesmo, um filme com várias camadas que nos devolve muito mais do que aparenta. E que nos diz muito sobre o valor da memória (ou do esquecimento).

“O que eu faço é uma tentativa de reconstituição de um processo de memória”, sublinha na nossa entrevista Catarina Alves Costa, a investigadora e também docente de Antropologia na universidade Nova de Lisboa. “No entanto, esta é uma memória que não é minha. Ou seja, projecto a minha memória numa memória mais antiga”. Sim, por aqui estabelece-se um diálogo de gerações, mas também um encontro de metodologias de trabalho.

O estudo, esse, foi iniciado há mais de 20 anos, quando Catarina estava ainda ligada ao museu de etnologia – tinha ela 29 anos (já depois do seu primeiro filme, Regresso à Terra, de 1992) e Margot Dias 88. Até chegar a este resultado final, o trabalho contemplou vários momentos de análise e edição das muitas horas de gravação dos 28 filmes contidos no acervo Margot Dias: Filmes Etnográficos (1958-1961), recuperados e editados (também em DVD) em 2016 pela Cinemateca. Além disso, passou a fazer sentido encarar o arquivo do passado de Margot, desde a sua infância, além de uma viagem a Moçambique onde Catarina Alves Costa captou algumas das imagens que agora vemos. Ou seja, um trabalho que se estende ao longo de mais de um século.

É fascinante o percurso de uma mulher que, à beira de fazer 50 anos, participa em 4 missões em África, dirigidas pelo marido, o investigador e antropólogo Jorge Dias, captando imagens, gravando sons e captando muita informação sobre a cultura Maconde e sobre os seus instrumentos musicais. Aliás, um trabalho apenas concretizado graças à sua determinação, pois o marido não apoiava a sua intenção de entrar na missão. “Toda a gente julgava que as mulheres vão para coser as meias e cozinhar”, recorda no filme, sublinhando que foi Adriano Moreira (1922-2022) quem acabou por convencer o marido.

Apesar das diferenças, Catarina recorda que esteve frequentemente “numa posição semelhante à que Margot teve nos Maconde, em que ia com uma câmara na mão à procura das imagens”. Aliás, quando pensa na Margot sente que ela acaba por ser um pouco “um alter ego”. Na verdade, como sublinha “o filme é muito isso, um balanço meu, do impacto que têm em nós o encontro com as pessoas que filmamos. Ou seja, o impacto que tiveram os maconde nela, e o impacto que ela teve em mim, quando eu era jovem; mas também o impacto que os maconde tiveram hoje em mim também quando fui a Moçambique. Então, são esses encontros, as várias camadas de encontros.”

Parte do acerco etnográfico resultante das missões de investigação de Margot Dias.

Um dos principais objectos de estudo foi o livro Macondes de Moçambique (dois volumes), assinado por Jorge e Margot Dias, incorporando uma análise profunda sobre instrumentos musicais de Moçambique. Bem como os inúmeros filmes etnográficos que Margot filmou num estilo próximo do ‘cinema verdade’ de Jean Rouch (1917-2004): “comecei por ver nestes filmes um Atlas, um sistema de pensamento. Um arquivo”. Em suma, um desejo de fixar uma vertigem de guardar um fragmento do mundo.

De certa forma, prolongando o trabalho notável que Catarina Alves Costa fizera com o estudo sobre o cineasta António Campos (1922-1999), intitulado Falamos de António Campos (2017), recuperado recentemente no Curtas de Vila do Conde, “em que eu tinha os filmes do Campos num leitorzinho de DVD portátil. Basicamente, eu levava as imagens do Campos e ia falar com as pessoas que tinham trabalhado com ele há 50, 60 anos atrás.“ Ou seja Catarina como Margot.

Passa por aqui um resgate da identidade de Margot Dias, mas também um elo musical em que a música africana substitui a herança de cultura clássica europeia. Compensado até pelo desejo desta mulher tão fascinada pelo outro que a levou a fugir do seu mundo burguês de Hamburgo. Num dos registos mais emotivos do filme, Margot comove-se ao recordar, em 1961, quando uma mulher (Tumechana) lhe faz uma pulseira de barro que coloca no pulso dela. Por este gesto percebe que fora aceite na comunidade deles.

‘Margot’, de Catarina Alves Costa (Midas Filmes)

“Estúpida!”, queixa-se Margot, aos quase 90 anos, ao ser traída pelo soluço da emoção. Mas é precisamente esse potencial da memória que recebe também hoje o elogio do jovem escultor maconde que encontrou no estudo de Margot uma forma de “compreender o passado, mas também ver para a frente”.

Não será igualmente esse “ver para a frente” que sublinha o valor da memória e a passagem do testemunho da investigação cultural? Ou seja, algo que passa a fazer parte de nós. “Eu sinto que me pus bastante dentro do filme”, confessa-nos Catarina Alves Costa. “Tentei que as pessoas percebessem que não é só a história dela, que é também uma história que estou a contar sobre mim própria. A Margot é, para mim, uma espécie de inspiração do que pode constituir a nossa vida. Acho isso muito inspirador.” Nem mais. É mesmo isso que permite que a história continue. E é também por isso que o documento Margot se reivindica como muito mais do que um mero filme etnográfico. Pois esse espaço de reconstituição da memória permite uma visão alargada do contacto com os outros e daquilo que nos diz respeito. É na união dessas duas portas que o filme se eleva.

(artigo originalmente publicado em Novembro de 2022, agora revisto e editado)

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