Duas pérolas nos 120 anos de Yasujiro Ozu

História de um Proprietário Rural, de 1947, e Crepúsculo de Tóquio, de 1957, são dois filmes absolutamente singulares do cânone de Ozu. Ambos inéditos comercialmente no nosso país, chegam esta semana às salas integrados na comemoração dos 120 anos de Yasujiro Ozu (e 60 anos da sua morte, a 15 de Dezembro).

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Setsuko Hara e Ineko Arima, em 'Crepúsculo de Tóquio.

A partir desta semana teremos a oportunidade de descobrir dois filmes que são uma revelação absolutamente singular no cinema de Ozu. Em História de um Proprietário Rural temos um registo ancorado nas consequências sociais do pós-guerra, naquele que foi o primeiro filme de Ozu realizado depois do lançamento das bombas atómicas no Japão, ao passo que, em Crepúsculo de Tóquio, há um certo desencanto que motiva um profundo melodrama de origem familiar. Ainda assim, tanto um como o outro, são filmes absolutamente incontornáveis na filmografia de Yasujiro Ozu. Sobretudo numa altura em que se comemoram os 120 anos do seu nascimento (a 12 de dezembro de 1903), bem como da sua morte (12 de dezembro de 1963), um capricho da natureza a rodear a vida e a carreira metódica do mestre japonês.

Filmado em 1947, dois anos após o fim da 2ª Guerra Mundial, História de um Proprietário Rural coincide também com o seu mais longo período de inatividade. Ele que passou um período longo em Singapura, entre 1943 até ao final da guerra, onde acabaria por tomar conhecimento com filmes americanos que haviam sido retirados de circulação pelo exército japonês. Entretanto, o estúdio Shochiku encomenda-lhe um gendai-geki, um drama contemporâneo, de forte componente social, bem distante do habitual cenário, para rodar em uma dezena de dias.

Só que para não mostrar os cenários de destruição, como era feito no mesmo período em Itália, Ozu filmou em grande parte no estúdio, sobretudo por reproduzir uma das partes da cidade mais afetadas pelo conflito. Será, aliás, esse o ambiente que revela uma criança perdida do seu pai (o pequeno Hohi Aoki). Ele vem trazido por um adulto (o incontrolável Chishu Ryu) e será oferecido a quatro adultos, embora nenhum aceite o encargo. Aliás, todos eles serão marcados pelo pessimismo: “detesto crianças” ouvir-se-á por mais do que uma vez. A sorte do rapaz será ditada até por um jogo do azar (ainda por cima falseado), que acabará por o entregar à viúva Tané (tremenda Choko Ilda), a quem produzirá uma profunda mudança interior. O garoto acabara´por lhe chamar ‘avó’, embora ela prefira ser ‘tia’…

Choko Iida e Hohi Aoki em ‘História de um Proprietário Rural’. (Leopardo Filmes)

Mesmo numa cidade devassada pelo conflito, percebe-se a mestria de Ozu, bem como toda a sua gramática assente precisamente na simplicidade dramática. E numa dimensão da família. Ainda que este menino perdido possa evocar todos os órfãos da guerra abandonados que vemos numa poderosa sequência final.  

Mesmo diante a destruição que se imagina, a câmara de Ozu furta-se a exibir qualquer sinal de destruição, o que foi até sido censurado aquando da estreia do filme. Tal como, no guião, qualquer alusão à guerra, ou o uso de qualquer plano mais aproximado com a intenção de revelar uma maior emotividade nos rostos. Os que vemos, bem como o verdadeiro pai que aparece no final, deixam passar esse sabor agre e doce na história.

Dir-se-ia até um filme na linha do neorealismo, ainda que sem as marcas desse passado de guerra. Pois não é o pai à procura do filho que seguimos, no que seria uma proximidade com Ladrões de Bicicleta, o filme que Vittorio De Sica filmaria no ano seguinte, mas antes o que sucede com o filho perdido. São estas personagens errantes que seguimos, em busca de um novo tipo de narração, e que encontram, por fim, no melodrama da criança, um renascimento como personagens. É é esse futuro potencial que choca com o passado, tal como é desarmante também a forma como a câmara e a fotografia preto e branco de Ozu captam uma certa harmonia e reconciliação, mesmo quando recriada a partir do caos. Sim, uma pequena pérola, com um final de emoção difícil de gerir.

Se Proprietário Rural é o primeiro filme depois da 2ª Guerra Mundial, já Crepúsculo de Tóquio, estreado precisamente uma década depois, possui igualmente um lado de efeméride, pois será o derradeiro filme de Ozu antes do seu período colorido. No ano seguinte filmaria o luminoso e poético Flores do Equinócio. Crepúsculo será talvez até uma das suas histórias mais negras, mesmo que seja – tal como Proprietário – um filme em que estão já solidificados os elementos centrais – a sua ‘gramática’ –, como o posicionamento da câmara no tatami, o tempo demorado dos planos, a repetição propositada da banda sonora que escutaremos em filmes mais adiante, as elipses  – majestosa, a final que nos eleva para o melhor de Ozu.

Crepúsculo de Tóquio (Leopardo Filmes)

Em todo o caso, estamos já em presença do ‘esquema’ mais sólido que fixou a sua fase final. Agora com Chishu Ryo que já está promovido a elemento paternal central, zeloso pelo casamento das filhas neste fulgurante melodrama familiar e insatisfação. Aqui, de novo com Stesuko Hara e a belíssima Ineko Arima, na verdade, o ‘rosto’ deste filme (e deste pequeno conjunto de filmes exibidos pela Leopardo Filmes). Ainda assim, com uma história que já parte da deceção: o pai separado, uma filha frustrada por um casamento arranjado (Hara) e mais nova insegura do seu futuro (Arima), da imaturidade do seu companheiro e da interrogação do ato por eles praticado. Mas também o pai falhado pelo afastamento da mulher e dos segredos deixados por revelar. Pois, no fundo, é toda a sociedade japonesa que acaba por ficar em cheque.

Este é claramente um Ozu diferente que nos revela questões inesperadas, como o aborto, o suicídio, a prostituição, mas igualmente o afastamento entre a geração adulta e a mais jovem. Não deixa, por isso mesmo, de ser acertada (e inesperada) a comparação que o texto de Manuel Cintra Ferreira (citado nas notas de produção do filme) faz de Crepúsculo de Tóquio com A Leste do Paraíso, de Elia Kazan, em que sublinha até essa proximidade da “’descoberta’ da mãe como ponto de partida para um drama de separação”. 

Se História de um Proprietário Rural nos arrebata pela sua delicada singeleza, atirando-nos para um poderoso choque emotivo, não deixa de ser igualmente verdade que Crepúsculo de Tóquio toca todas as notas mais altas da sua longa carreira, mantendo-se fiel ao seu cânone cinematográfico. Mas, ainda assim, indo um pouco mais além. Sim, duas pérolas do cinema de menos conhecido de Yajusiro Ozu.