António-Pedro Vasconcelos – agora é mesmo “um espetador sonâmbulo da sua própria vida”

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António-Pedro Vasconcelos, ou simplesmente A-PV. Deixou-nos durante a noite de terça-feira. Completaria 85 anos no dia das eleições. Já não chegará a votar. 

Nunca tive jeito para obituários, para RIP’s nas redes sociais, para eulogias fúnebres. Apenas na morte de Godard me senti impelido a escrever umas linhas sobre um cineasta de génio e exceção; faço-o também no caso de A-PV, salvo as devidas diferenças, menos aquela em que o português era um grande fã e conhecedor do franco-suíço. Por sinal, tive a oportunidade de um dia trocar algumas palavras com Godard, via Face Time, num iPhone; no caso do António-Pedro, tive ocasião de o conhecer, há menos de dois anos – isto quando o Pacheco Pereira me incumbiu de organizar uma mesa redonda com gente do cinema para falar sobre a censura. O nome dele não poderia faltar. E não faltou. Mais recentemente, depois de um almoço com os camaradas da Ephemera, onde ambos estiveram presentes, levei o A-PV a casa. Ele que me dizia até que o iria ajudar na mini-série que preparava sobre o 25 de Abril, e que fora a razão do encontro com o Pacheco Pereira. 

Durante a viagem da Póvoa de Sta. Iria até à Av. Infante Santo, para o seu escritório, mencionei-lhe que hoje em dia usava bastante o barco para me deslocar do Montijo; algo que me dava imenso jeito, pois quando tinha de ver um filme no cinema Ideal, era só subir a rua. Nisto, o António-Pedro, com alguma brusquidão, atira: “eh pá, você não me diga que gosta do Pedro Costa?!” Assim. Eu, encurralado, devolvi: “sim, gosto bastante do cinema dele”. A conversa mudou logo de tom; que era um cinema de “pornografia” visual, explorando os cabo-verdianos. E voltou à carga: “e do Miguel Gomes, também gosta?” Eu: “sim, também gosto. Mas gosto mais do Pedro Costa”. Nisto já tínhamos chegado à Infante Santo. Ele abriu a porta e foi-se embora. Nunca mais me mandou uma mensagem.

Agora o cinema mais pobre sem ele. Mas quando começou, era rico de ideias e cheio de energia. Os seus primeiros três filmes isso mesmo atestam. Tudo começa a bordo de um descapotável, em Perdido por Cem, ainda durante a ditadura, em 1973, com APV em estilo de JLG, pela estrada fora. Aí, já se sentia alguma inquietação pelo cerco de um país que fechado. “Fecho os olhos; é como se os tivesse aberto no escuro; vejo tudo o que aconteceu, como se eu fosse espetador sonâmbulo da minha própria vida” Assim abre o filme, afetado por uma premonição.

O segundo, já seria depois da Revolução. E leva no título um desejo e um noivo descapotável vermelho. Estávamos em 1980: Oxalá! Entre as idas e vindas de Lisboa a Paris, como ele próprio fizera. Em O Lugar do Morto (1984), o carro ainda é vermelho, e o encontro com Ana Zanatti, é breve, mas fatal como o destino.