Domingo, Outubro 13, 2024
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Grand Tour: o cinema celebrado enquanto ‘joie de vivre’!

O cinema é uma viagem. Uma viagem do cinema. Que se faz no tempo e no espaço. É a partir do virtuosismo cinematográfico de Miguel Gomes que se constrói a refinada exploração artística que faz de Grand Tour o seu mais fascinante exercício de cinema. De certa forma, prolongando o lado autoral do anterior Tabu (2012), aproveitando a veia mais idiossincrática dos 3 volumes de As Mil e Uma Noites (2015), ou a inversão (ou subversão) de todas as regras do covid convertidas na rodagem de Os Diários de Otsoga (2021). Isto sem esquecer a experimentação iniciada pelas várias curtas que acabaram em Aquele Querido Mês de Agosto (2008).

Gomes celebra um certo lirismo hipnótico feito desejo de cinema que não deixa de piscar o olho à modernidade. Isto ao mesmo tempo que invoca a cultura do século passado, o documentário de época, superando ainda, com um certo à vontade, barreiras do tempo, espaço ou géneros, alternando entre a película monocromática ou colorida. O que importa é que o conjunto suporta uma cuidada mediação que faz de Grand Tour o evento cinematográfico deste ano.

Gran Tour, em estreia nas salas

Gonçalo Waddington e Crista Alfaiate são os peões num itinerário em forma de bilhete para o ‘grande salto’ ao desconhecido – uma suporta viagem de noivado. Ele, Edward, um administrativo diplomático ao serviço de Sua Majestade, que chega a Rangoon, em 1918, para logo ceder à aventura, apanhando o primeiro vapor para Singapura; ela, Molly Singleton, a espirituosa noiva vinda de Londres, não piscará o olho por um segundo, assumindo a ideia de ‘corrida’ atrás do seu homem, movida pelo riso mais desconcertante do cinema, apostando que o trará, nem que seja ‘pelo gasganete’!

É neste mundo cansado de uma guerra e diante um ‘ajuste’ colonial, que se esboça um corpo de aventura que deveria ser romântica, mas que acaba sempre ultrapassada pelo atrevimento e o mero prazer da viagem. É como se o seu destino já estivesse escrito nas cartas, neste caso, no guião de Gomes, co-assinado por Telmo Churro (que também co-edita), Maureen Fazendeiro, elemento cúmplice de MG, e Mariana Ricardo, afinal de contas, o ‘comité central’ do costume. 

Pelo meio, é como se fossemos atravessados por mais de um século de história de filmes de aventuras em período colonial, tão próximo dos tempos do cinema mudo de que Tabu quis homenagear – no caso o filme homónimo de Murnau de 1931. Agora é com recurso a voz off que se desenha o desafio espácio-temporal, em que um segue à frente do outro, ziguezagueando num interminável ‘hop-on hop-off’ com paragens na Tailândia, Vietname, Filipinas, Japão, China, Tibete…

Assim esboça Miguel Gomes o seu mapa, oferecendo a primeira parte da sua odisseia oriental a ele, e a segunda a ela. Isto num universo indiferente a eventuais intromissões de um mundo moderno (e colorido!) em película de 16mm. Até que, a certa altura, alguém diz qualquer coisa como, ‘entregue-se ao mundo! Pois, se se entregar, será recompensado’. Ou seja, entregue-se à viagem deste casal, só aparentemente desavindo, que segue sem carta de orientação. Talvez porque a recompensa que está lá dentro ‘É mesmo o cinema!’ É aí, nesse ponto preciso, que temos a perceção de que atrás do ecrã se imagina um homem com uma câmara de filmar, e antes dele, as ideias de cinema que ousou colocar na tela. E então aí podemos ser invadidos por algo que poderá ter a dimensão do sublime. 

Porque tudo (ou quase tudo) pode acontecer nessa ‘road to nowhere’. Seja um tipo num bar de karaoke, em Manila a cantar My Way, de Sinatra, ou um panda em cima de uma árvore, um fascinante teatro de marionetes ou uma exibição de artes marciais. Este é um mundo de contrastes em que qualquer um se pode perder, como numa valsa de motorizadas, devidamente embalada pelo Danúbio Azul, de Strauss. É isso Grand Tour, um nome que vem associado ao périplo exótico pelas grandes cidades do extremo oriente. 

Acrescente-se que parte dessa aventura (a de fazer o filme!) decorreu ainda num período de restrições sanitárias, o que forçou a equipa a regressar do Japão e a transformar Miguel Gomes num realizador à distância, dirigindo o diretor de fotografia Guo Liang através do deslocamento digital dos dias de hoje, em que as sequências com os atores seriam dirigidas em estúdio e captados pela câmara de Rui Poças. 

O resultado é um poderoso objeto de cinema, em que nada, ou quase nada, é verdadeiramente explícito. De tal forma, que a certa altura, a personagem de Gonçalo Waddington tem uma frase que sintetiza a iniciativa de embarcar no ‘grand tour of Asia’. Diz ele: ‘Atrai-me esta vida’! Pois é, nem mais. Grand Tour é isso, um filme sobre a joie de vivre

Grand Tour
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