Quarta-feira, Outubro 16, 2024
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A Pedra Sonha dar Flor: é o sonho cinematográfico de Rodrigo Areias

Ao adaptar o realismo da palavra de Raul Brandão, Rodrigo Areias conferiu também a medida certa do seu cinema em A Pedra Sonha dar Flor .

Filmar a palavra não será uma tarefa fácil. Apesar da complexidade, A Pedra Sonha dar Flor reflete uma fascinante combinação entre o texto profundamente realista (mas muito visual!) de Raul Brandão num registo que pesa a medida de cada palavra, de cada frase. E mesmo não sendo um filme de degustação apressada ou de entretenimento ligeiro, a urgência, o lirismo e a intencionalidade da aproximação à obra não estranham, e até acomodam a atitude das frases atiradas como ‘um jato de saliva silvada sobre o papel’.

Rodrigo Areias aceitou o enorme desafio de embarcar na jornada de estabelecer uma adequada tradução visual aos textos da obra A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, datado de 1926, embora – o que não deixa de ser uma bela curiosidade – o texto original do escritor portuense seja de 1896, aquele que foi o primeiro ano das imagens em movimento criadas pelos irmãos Lumière. O que torna este ‘sonho cinematográfico’ em algo ainda mais grandioso e significativo.

Tal como por vezes é necessário reler várias vezes determinadas passagens para se alcançar o peso absoluto das palavras, também aqui nos ajudou a possibilidade (e o desejo) de revermos o filme imediatamente a seguir (e outros visionamentos poderiam seguir-se). No caso, graças à cedência de um suporte digital (sim, sem a dimensão e o ambiente da sala escura) que de modo a deixar-nos invadir pela tremenda força do texto de Brandão com o admirável cinema de Areias. Mérito (mas também o risco assumido) do cineasta vimarenense de 46 anos (também produtor e co-autoria do guião) em manter uma extrema fidelidade à letra dos textos, permitindo-se o sonho (ou quimera!) de dar flor, de ser imagem, de ser cinema. 

Ao pensar nos melhores exemplos de filmes baseados em obras literárias e líricas, tomamos o exemplo de Não Sou Nada, de Edgar Pêra, em que esse rigor se desmultiplica pelas vozes (ou heterónimos) de Fernado Pessoa. Mas voltemos a Brandão, ou a Areias. E à forma muito justa de operar essa ultrapassagem 

O filme acompanha em sete capítulos a vida sombria de diferentes personagens, incluindo a do próprio autor, na Vila Húmus, perdida entre a ria de Aveiro, Ovar e Estarreja, paragens que ilustram o desencanto e desespero vertido nessas páginas. Contudo é nesta ‘morte’ que espreita também uma oportunidade de sonho, como matéria última para escapar a uma realidade desprezível. É então neste espaço e tempo sem registo que uma narrativa e uma ideia de cinema tenta brotar. Ou florir. Nem que essa possibilidade só aconteça depois da vida.

Nuno Preto encarna o autor Raul Brandão (Foto Nitrato Filmes)

Este é ainda um filme captado pelo ambiente musical e sonoro do artista musical Dada Garbeck (Rui Souza) devidamente impulsionado por cânticos populares (e que darão origem a vários cine-concertos). Embora marcado pela prestação rigorosa e irrepreensível de um elenco numeroso, constituído por Nuno Preto (Maurício e Palhaço), Vitor Correia, João Pedro Vaz, Angela Marques, Miguel Moreira, mas também pequenos grandes papéis de Miguel Borges ou até de uma desencantada Adelaide Teixeira quando sentencia “é tudo uma comideira”.

Num filme onde o foco é a palavra e o cinema lhe procura corresponder em cada cena como um quadro de perfeição de luz e enquadramento, setencia-se o eco fatal do que resta, afinal de contas esse “estupor da realidade, transformada numa coisa alada, de sonho, numa obra fria e de pedra.” Talvez o cinema seja um pouco isso, quando se escuta: “a vida só é boa quando de todo se perdeu, e se tem pena de não ter vivido mais. Custa perdê-la porque se tem sempre a esperança de encontrar um momento, um lugar onde se construa a quimera – o sonho, como um tronco que arde e se estingue.”

A Pedra Sonha dar Flor
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