Segunda-feira, Março 31, 2025
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‘On Falling’: diário de uma empregada de armazém

Laura Carreira prolonga, na sua primeira longa-metragem, a solidão do trabalho desumano. Um filme premiado em San Sebastian com o prémio de realização.

Laura Carreira prolonga, na sua subtil primeira longa-metragem, a solidão pessoal e a precariedade do trabalho. Um filme premiado em San Sebastian com o prémio de realização que agora chegas às salas.

Para cada compra barata à distância de um ‘clic’ (pensem na Temu ou outras lojas online semelhantes) corresponde um trabalho maquinal, stressante, preciso e exigente do ‘picker’, o funcionário encarregue de localizar cada item e adicioná-lo à sua lista interminável. É precisamente o outro lado deste prazer imediato que a cineasta Laura Carreira, há mais de uma década a viver e trabalhar na Escócia, nos propõe no filme em estreia mais importante da semana, vencedor do prémio de realização no último festival de San Sebastian, onde entrevista.mos a realizadora

Vejamos, On Falling não é um título qualquer. Essa estranheza – e que se opta por não traduzir – remete para o vácuo dos gestos automatizados, para um pensamento formatado, um isolamento que viverá, em muitos casos, paredes meias com o desespero. Pois cada segundo conta para que o cliente receba a sua encomenda em casa no espaço de um ou dois dias. Bem-vindos então à dureza da divisão do trabalho dos grandes armazéns dedicados às compras online. Espreitemos o lado (des)humano dessa cadeia, naquele que será um dos mais desarmantes registos da solidão descrita pelo cinema. Percebe-se até o interesse no projeto pela Sixteen Filmes, de Ken Loach, autor de uma obra sobre os desfavorecidos e o proletariado, aqui em co-produção com a britânica BBC Film, a francesa Goodfellas e a portuguesa BRO cinema, de Mário Patrocínio.

O título sugere-nos num conceito de queda, exprimindo o sentimento de vazio interior daquela legião de trabalhadores de uma comunidade escocesa não identificada. Seguramente, muitos deles emigrantes, como a portuguesa Aurora (Joana Santos). Na verdade, não serão eles o correspondente europeu aos migrantes do hemisfério sul? Aliás, o significado talvez mais correto de ‘on falling’ poderá ficar marcado pelo movimento de perda daqueles que encomendam uma corda, derradeira compra antes de a colocar ao pescoço e aguardar a extensão da queda debaixo de uma ponte.

O plano de abertura capta bem perto a cena da entrada dos operários na fábrica. Uma pequena multidão anónima de pickers que se dirige para o dia de trabalho. Eles caminham como zombies que se vão afunilando no interior de um corredor de plástico. Em que consiste o seu trabalho? Pois bem, registar e preencher o código de uma lista dos produtos que todos encomendamos. Isto num tempo muito limitado, antes que o dispositivo portátil assinale um atraso que será de imediato assinalado. Algo não muito longe do filme Sorry we Missed You, realizado pelo mesmo Ken Loach, em 2019, sobre a solidão de um motorista a braços a sua ‘uberização do trabalho’.

Apesar do stress, Aurora vai mantendo um sorriso afável e disponível, na esperança de um qualquer contacto humano. Divide o combustível com uma amiga portuguesa que lhe dá boleia para o trabalho e que sonha com um ‘desk job’ em Portugal. A sua vida é assim, feita de pequenos nadas, de ligações partilhadas, seja com os colegas de apartamento, as contas de eletricidade, onde a falta de um irá comprometer todos. Ou quando a recompensa de um trabalho mais rápido se reduz à escolha de um chocolate num cesto ou um desejo de doçura se reduz à compra de dois bolinhos numa pastelaria. Ou até à apropriação de uma pequena embalagem de apetitivos fritos dos colegas. Sempre serve para matar a fome.

A afetividade desta pequena comunidade feita de pequenas ilhas e com estilo de vida precário surge apenas como mera possibilidade. Parece adiada e apenas partilhada nos momentos de conversas ocasionais nas pausas de refeição. Seja sobre a série ‘que está a dar’, o que fazer no tempo livre, nem que seja a tratar da roupa na lavandaria. Como aquele rapaz simpático com quem Aurora trocou essas palavras e que acaba por se assinalar a sua falta, por ter sido a mais recente vítima de suicídio.

Num momento em que pondera uma mudança de trabalho, Aurora aceita fazer um teste de maquilhagem numa loja antes de uma entrevista. Contudo, esse contacto, essa mão de amparo, surgirá apenas depois de Aurora sucumbir, desmaiada no parque. Talvez demasiado perto do limite que a outros foi imposto um final decisivo.

“On Falling” resulta num maravilhoso gesto de cinema sobre o lado realista da precaridade das condições de trabalho, mas também do sentido da vida. De resto, em linha com as suas curtas anteriores, sobretudo Red Hill (2018), sobre o último dia de um guarda-noturno antes da reforma, ou sobretudo The Shift (2020), sobre o fio da navalha e os limites do trabalho temporário.

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