Sexta-feira, Abril 18, 2025
Início Site

Cão Preto: Amor canino em western de redenção

Há uma tremenda força no cinema do chinês Guan Hu – um realizador pouco desconhecido (até agora!), mas que nos aprisiona de imediato na impressionante sequência de abertura, captada num magnífico widescreenpelo diretor de fotografia Gao Weizhe. Percebe-se logo que é coisa de autor. A câmara acompanha ao longe uma minivan que se desloca na paisagem desértica. Sente-se a força do vento nesse lento travelling que é gradualmente absorvido pelo torpor de dezenas de cães selvagens que galopam para o vale acabando por provocar a viragem da carrinha.

Passaram pouco mais de dois minutos e já estamos rendidos a “Black Dog”. O cenário poderia até indiciar uma abertura em pleno Death Valley, de Ford, embora aqui com uma iluminação irreal que recorta as escarpas ameaçadoras das montanhas, conferindo à cena uma identidade própria. Quase de outro mundo. Só que este não é o deserto Mojave, mas o de Gobi, algures no noroeste da China

Em “Cão Preto” sente-se uma proximidade ao western spaghetti, com uma galeria de personagens mais ou menos insidiosas. Aliás o protagonista Lang (Eddie Peng) possui até uma linhagem que não será longínqua de várias encarnações de Clint Eastwood. Pelo gesto cuidado de cinema, que não deixa de ser ‘rock and roll’ (já lá vamos), assenta-lhe bem o prémio de melhor filme na secção Un Certain Regard, este ano em Cannes.

Estamos em 2008. A data não é uma qualquer. É o ano das olimpíadas de Pequim, um verdadeiro marco para a China, quando este imenso país se abriu ao mundo, insuflando o peito nacional de orgulho, renovação e confiança no futuro. No entanto, Guan Hu opta por centrar a narrativa de “Black Dog” longe da capital e antes nos confins da China. Oportunidade para correr com os animais indesejáveis. 

Lang é um dos passageiros que sai do veículo acidentado. Abalado, mas praticamente ileso, regressa a casa, após dez anos de prisão por participação num homicídio. Reconhecemos nele o típico anti-herói solitário, com uma proximidade a várias personagens emuladas por Clint Eastwood, ou à galeria de anti-heróis de Nicholas Ray. Há até parte do vaqueiro Robert Mirthum-Jeff McCloud, em “The Lusty Men/Idílio Selvagem”, de 1952. Também ele a regressar a uma terra que já não é o que era. Só que em vez de cavalos, Lang (que não deixa de ser um apelido que nos convoca outras tantas memórias do cinema americano) emerge de um passado de circo de rua, música e motocicletas. 

Poderá ele regressar a casa? Só ser for como um cão vadio, já que é a única companhia que acabará por fixar numa cidade que lhe cresceu hostil. É a atmosfera sufocante da decadência do pai alcoólico, o ressentimento da comunidade e um magnata local do kebab. 

Somado à ameaça de cães raivosos que vagueiam pelas ruas. Em particular um galgo sinuoso, dado como raivoso, a quem se afeiçoa depois de este o morder quando participava num grupo para capturar os animais indesejáveis, onde vemos, curiosamente, Jia Zang-Ke, no papel do organizador da busca. É quase como se essa cicatriz simbolizasse uma união entre ambos e os preparasse para a redenção. Aliás o filme sugere uma curiosa aproximação, a partir do momento em que os animais passam a ocupar os espaços dos humanos que se foram. E são em algum número, como os de um zoo abandonado ou os ocupantes de uma quinta de cobras de criação para alimentação. 

Lang é já um homem diferente, reservado e silencioso, em contraste com a vida anterior. Um detalhe discreto é dado por um autocolante dos Pink Floyd que conserva na sua moto antiga. Algo que acabará por nos propiciar, lá mais para o fim, um potente momento musical que será igualmente um dos mais empolgantes momentos da fita. Aliás, “Cão Preto” deixa-nos algumas das mais belas cenas vistas no cinema este ano. Como a cena inigualável do eclipse do sol ao som dos Pink Floyd. 

Ao longo da metáfora de mudança que une estes dois seres, cabe a observação metodológica que Guan faz às transformações – as boas e as más – ocorridas no seu país ao longo de duas décadas, bem como uma aproximação à clivagem entre a cidade e interior mais remoto. 

Sim, Guan Hu é um nome a reter. Pertence à 6ª geração de cineastas chineses e fica muito bem na fotografia que tão bem capta a estranha aproximação de homens a animais. A sua realização hábil facilita a transição entre o humor negro e o drama contundente, acompanhando duas almas penadas em rota de renovação entre os resquícios de um terreno de western de redenção em plena China. 

‘On Falling’: diário de uma empregada de armazém

0

Laura Carreira prolonga, na sua subtil primeira longa-metragem, a solidão pessoal e a precariedade do trabalho. Um filme premiado em San Sebastian com o prémio de realização que agora chegas às salas.

Para cada compra barata à distância de um ‘clic’ (pensem na Temu ou outras lojas online semelhantes) corresponde um trabalho maquinal, stressante, preciso e exigente do ‘picker’, o funcionário encarregue de localizar cada item e adicioná-lo à sua lista interminável. É precisamente o outro lado deste prazer imediato que a cineasta Laura Carreira, há mais de uma década a viver e trabalhar na Escócia, nos propõe no filme em estreia mais importante da semana, vencedor do prémio de realização no último festival de San Sebastian, onde entrevista.mos a realizadora

Vejamos, On Falling não é um título qualquer. Essa estranheza – e que se opta por não traduzir – remete para o vácuo dos gestos automatizados, para um pensamento formatado, um isolamento que viverá, em muitos casos, paredes meias com o desespero. Pois cada segundo conta para que o cliente receba a sua encomenda em casa no espaço de um ou dois dias. Bem-vindos então à dureza da divisão do trabalho dos grandes armazéns dedicados às compras online. Espreitemos o lado (des)humano dessa cadeia, naquele que será um dos mais desarmantes registos da solidão descrita pelo cinema. Percebe-se até o interesse no projeto pela Sixteen Filmes, de Ken Loach, autor de uma obra sobre os desfavorecidos e o proletariado, aqui em co-produção com a britânica BBC Film, a francesa Goodfellas e a portuguesa BRO cinema, de Mário Patrocínio.

O título sugere-nos num conceito de queda, exprimindo o sentimento de vazio interior daquela legião de trabalhadores de uma comunidade escocesa não identificada. Seguramente, muitos deles emigrantes, como a portuguesa Aurora (Joana Santos). Na verdade, não serão eles o correspondente europeu aos migrantes do hemisfério sul? Aliás, o significado talvez mais correto de ‘on falling’ poderá ficar marcado pelo movimento de perda daqueles que encomendam uma corda, derradeira compra antes de a colocar ao pescoço e aguardar a extensão da queda debaixo de uma ponte.

O plano de abertura capta bem perto a cena da entrada dos operários na fábrica. Uma pequena multidão anónima de pickers que se dirige para o dia de trabalho. Eles caminham como zombies que se vão afunilando no interior de um corredor de plástico. Em que consiste o seu trabalho? Pois bem, registar e preencher o código de uma lista dos produtos que todos encomendamos. Isto num tempo muito limitado, antes que o dispositivo portátil assinale um atraso que será de imediato assinalado. Algo não muito longe do filme Sorry we Missed You, realizado pelo mesmo Ken Loach, em 2019, sobre a solidão de um motorista a braços a sua ‘uberização do trabalho’.

Apesar do stress, Aurora vai mantendo um sorriso afável e disponível, na esperança de um qualquer contacto humano. Divide o combustível com uma amiga portuguesa que lhe dá boleia para o trabalho e que sonha com um ‘desk job’ em Portugal. A sua vida é assim, feita de pequenos nadas, de ligações partilhadas, seja com os colegas de apartamento, as contas de eletricidade, onde a falta de um irá comprometer todos. Ou quando a recompensa de um trabalho mais rápido se reduz à escolha de um chocolate num cesto ou um desejo de doçura se reduz à compra de dois bolinhos numa pastelaria. Ou até à apropriação de uma pequena embalagem de apetitivos fritos dos colegas. Sempre serve para matar a fome.

A afetividade desta pequena comunidade feita de pequenas ilhas e com estilo de vida precário surge apenas como mera possibilidade. Parece adiada e apenas partilhada nos momentos de conversas ocasionais nas pausas de refeição. Seja sobre a série ‘que está a dar’, o que fazer no tempo livre, nem que seja a tratar da roupa na lavandaria. Como aquele rapaz simpático com quem Aurora trocou essas palavras e que acaba por se assinalar a sua falta, por ter sido a mais recente vítima de suicídio.

Num momento em que pondera uma mudança de trabalho, Aurora aceita fazer um teste de maquilhagem numa loja antes de uma entrevista. Contudo, esse contacto, essa mão de amparo, surgirá apenas depois de Aurora sucumbir, desmaiada no parque. Talvez demasiado perto do limite que a outros foi imposto um final decisivo.

“On Falling” resulta num maravilhoso gesto de cinema sobre o lado realista da precaridade das condições de trabalho, mas também do sentido da vida. De resto, em linha com as suas curtas anteriores, sobretudo Red Hill (2018), sobre o último dia de um guarda-noturno antes da reforma, ou sobretudo The Shift (2020), sobre o fio da navalha e os limites do trabalho temporário.

Óscares 2025: Sonhos de uma noite de prémios (mas sem casos!)…

Sim, Anora venceu, mas foi O Brutalista quem mais convenceu. E depois há os outros. O Brasil ainda teimou e exclamando, Ainda Estou Aqui. Quanto às despesas políticas da noite, foram em grande parte entregues aos autores de No Other Land. Assim se cumpriu a narrativa dos Óscares, aquele sonho mítico que (pelo menos, durante alguns dias do ano) alimenta paixões, despoleta cinefilias e faz a vénia ao fausto e brilho da indústria de cinema.

No palco (ou do ecrã de televisão) do Dolby Theatre, ali mesmo, no coração de Hollywood, ficaram inscritos no seu panteão os nomes da safra de 2025, de acordo com o inevitável desígnio de fantasia. E que leitura fazemos desses prémios, dessa noite de glória (pelo menos para alguns)?

Em jeito de tweet rápido, dir-se-á que a noite foi de Sean Baker e do seu “Anora”, com cinco valiosas estatuetas, quatro delas para o realizador que assim celebrou o seu cinema independente e pugnou por uma corrida às salas. Diz que é um recorde. Mesmo que a última Palma de Ouro do mais importante festival do mundo esteja, talvez, um pouquinho aquém de tão gigantesco reconhecimento. Mas já lá vamos.

Chamemos então as coisas pelos nomes e recordemos como naquele longo e sereníssimo serão, o enorme elefante na sala – leia-se o mundo (nada admirável) em que vivemos -, foi lateralizado. Ou cuidadosamente silenciado. Cedo se percebeu que a pulsação política, historicamente verbalizada pela mais poderosa comunidade criativa do mundo, se quedou por uma serena e confrangedora timidez. Mas mal seria se os sinais da outrora land of the free fossem cada vez mais cercados por um libelo autocrático. Digamos que apenas se tocou na ferida.

Por falar em política, esta manifestou-se sobretudo na forma como as contradições da atriz espanhola Karla Sofia Gascón acabaram por penalizar as aspirações do musical de Jacques Audiard Emilia Pérez, ainda que não tenham ido ao cúmulo de obliterar a vibrante prestação da sua atriz secundária, Zoe Saldaña. Ou o grito espontâneo de Darryl Hannah, em apoio à Ucrânia!Ainda assim, o sublinhado político mais notório seria assinalado pelo palestino Basel Adra e pelo israelita Yuval Abraham, justíssimos vencedores do prémio de melhor documentário, com No Other Land, sobre o constante empurrão geográfico das tropas israelitas sobre as populações na sua terra, em Masafer Yatta, em plena zona ocupada da Palestina, apelando ao mundo para parar com a limpeza étnica do seu povo. De referir que eles foram os mesmos que, o ano passado, provocaram alguma celeuma e controvérsia política no festival de Berlim.

Já Conan O’Brien vestiu o smoking de apresentador, embora se tenha ficou por um singelo comentário político, ao referir que o sucesso de “Anora” se justificava pela personagem com a coragem de se impor aos… russos. Ok, Conan. No caso, referindo-se ao casamento, por conveniência, da sex worker Annie, ou Anora, com o filho mimado de um oligarca russo, que assim iria obter a nacionalidade americana. Essa é então a story line do guião do ano. Mas será que é mesmo? Ao rever o filme confirma-se que o singelo sonho proletário de Annie se esvai diante uma crua realidade. Mas que, paradoxalmente, acaba por premiar a desconhecida Mickey Madison, cujo nome apenas debutou no filme que obteve o prémio máximo em Cannes. Em todo o caso, e se quisemos ser rigorosos, a sua prestação dificilmente fará a história do cinema. Pelo menos, desmerece ao lado do investimento de Demi Moore, em A Substância, e do que esse papel representa nos dias de hoje (e nos premios de cinema). E que efeito terá tido o ‘afastamento’ de Karla Sofia Gascón, uma personagem com robustez temática superior à sua. Ou até o crescimento mediático (e esperançoso para o enorme universo brasileiro) de Fernanda Torres em Ainda Estou AquiE que ficaria totalmente justificado ao sobrepôr-se aos restantes candidatos do prémio internacional. Até mesmo a Mohammad Rassoulof e à sua A Semente do Figo Sagrado.

Mas mesmo que Madison não esteja à altura de outras personagens marcantes do universo indie de Baker, percebe-se que o DNA de Annie começa a desenvolver-se ao longo da filmografia de Sean Baker, sobretudo desde Starlet (2012), Tangerine (2015), Florida Project (2017) ou mesmo, no mais recente, Red Rocket (2021), também ele sobre uma personagem da indústria do sexo.

De resto, tudo se cumpriu com uma certa justeza. Sejam os três prémios para esse filme fora de época – “O Brutalista”, desde logo, para o obrigatório a Adrien Brody, apesar de ele próprio só poder ter mesmo medo da sua própria sombra – ou seja, aquela que lhe deu quase 30 anos depois um novo Óscar por uma personagem, digamos assim, não tão diferentes do calibre de O Pianista. Esse é um filme que se ergue como um próprio edifício, ao longo das suas três horas e meia. Mesmo que esse esforço em alcançar a genialidade, possa até roçar alguma indesejada megalomania. Aliás, como sucede, e nem de propósito, com Megalopolis, de Francis Ford Coppola, a quem entregaram o Razzie, de ‘pior filme’. O mesmo Coppola que, há precisamente meio século, venceria os Óscares de Filme, Realizador e Argumento Adaptado.

Adrien Brody que teve uma forte concorrência por parte de Timothée Chalamet e da sua composição total de Bob Dylan, em “Um Total Desconhecido”. Ele que esteva para aparecer, mas que disse ‘i’m not there’, enviando antes Mick Jagger, o que é sempre um bónus inesperado para um artista que quase nunca aparece. Por seu turno, Walter Salles repetiria em palco “Ainda Estou Aqui”, empunhando o Melhor Filme Internacional. Kieran Culkin confirmou também a performance avassaladora de “Uma Verdadeira Dor”.

Acabada que está a festa e apanhados que foram os foguetes, qual terá sido então a oportunidade perdida da noite? Talvez a de Conan O’Brien não desprezar a sua invulgar semelhança física ao ‘homem mais rico do mundo’ e perder a oportunidade de explorar uma inesgotável fonte de humor. Lá está, sonhos de uma noite de Óscares – mas sem casos.

‘Timestamp’: o futuro e a vida escolar na Ucrânia após três anos de guerra

0

No dia em que se comemoram três anos da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, evoca-se o valioso documentário de Kateryna Gornostai, a cineasta ucraniana de 35 anos que que trouxe à Berlinale o único exemplo de cinema a concurso para o Urso de Ouro, apesar de não conquistar qualquer prémio. Timestamp não poderia ser mais oportuno, pois deixa essa ‘marca no tempo’, por sinal, apontando a câmara ao futuro, ou seja, à vida nas escolas durante o tempo de guerra e ao valor da educação como a pedra de toque e a base da civilização. Seguramente, um valioso gesto moral que fala volumes sobre a teimosia da humanidade no meio da selvajaria bélica.

Por falar em História, há precisamente 83 anos, em 1942, aquele ‘annus horribilis’ que haveria de coincidir com a entrada dos EUA na guerra, o filme Mrs Miniver, de William Wyler, sobre uma “uma mulher comum que leva uma vida comum – muito parecida com a sua”, recebia o elogio rasgado de Winston Churchil. Referia ele que essa história equivalia a ‘uma frota de destroyers’ no esforço de guerra. O filme viria a ser o maior sucesso desse ano e vencedor de seis Óscares (incluindo melhor filme, realizador e atores). 

A comparação justifica-se, pois sente-se no filme de Gornostai esse olhar sereno sobre quem está atrás da linha da frente, recusando qualquer forma de narrativa em “voz off” ou “talking heads”. Apenas são indicadas legendas com nomes das cidades – que agora reconhecemos de serem mencionadas em blocos de comentário político sobre a guerra – e a sua distância para a linha da frente. Voltando a Chuchill, o que haverá de “mais comum” que a vida escolar do primeiro e segundo ciclos, mesmo quando a guerra já faz parte da vidas de crianças em idade escolar? Fora dela, sentia-se apenas a guerra nas suas consequências, seja na destruição dos edifícios civis e escolares, ou quando soavam os alarmes de potenciais ataques aéreos, ou nos regulares minutos de silêncio. 

Ao longo destes 125 minutos observacionais, com imagens captadas entre março de 2023 e junho de 2024, espelham-se as rotinas escolares que decorrem ao longo de um ano letivo, com um final em que acaba por simbolizar a assimilação desse ciclo de aprendizagem, devidamente adaptado a essa realidade. E onde se sente até algum otimismo, não só, pelo entusiasmo observado pelas diferentes faixas etárias, mesmo quando adolescentes já preparados para uma potencial intervenção em combate, seja por aulas de tiro, ou em cuidados de primeiros socorros. Ainda que um dos segmentos mais intensos seja uma aula de arte, em que o docente estimula a perceção das crianças para as formas, cores e visão de conjunto dos seus trabalhos. 

Não deixa de ser curioso, como este documentário acaba por convocar a memória do igualmente ignorado Ari, de Léonor Serraille, sobre os desafios de auto-redescoberta de um professor de pré-primária, mas sobretudo pelo relevo que dá à espontaneidade indomável das crianças. Mas é pena que num festival que sempre pugnou pela afirmação de valores, mesmo afirmando uma vincada marca política, seja ignorado o único filme (dos 19 da competição oficial) que abordava a realidade do mundo em que o continente europeu vive 80 anos após o final da mais devastadora guerra do século e da criação da Carta das nações Unidas. 

Timestamp centrou-nos a atenção naquilo que é realmente importante. E, pode dizer-se até, legitimamente, poderia ter sido vencedor do Urso de Ouro, não obstante o ter sido programado para o último dia (ou talvez mesmo para evitar um eventual desgaste). Sejamos claros, a solução encontrada (Dreams) deixa no ar um sentimento de uma solução de compromisso. 

Só se poderá compreender esta distância, em sinal de algum desgaste em relação a anos anteriores. Sobretudo na edição de 2023, em grande parte dominada por diversas produções ucranianas (ou em co-produção) focando-se no conflito. Desde logo, por Superpower, de Sean Penn, em 2023, espelhando a carreira de Volodymyr Zelensky, ou a visão do cineasta ucraniano Vitaly Mansky (em Eastern Front) – ele que regressou este ano com o filme de três horas Time to the Target, exibido na secção Fórum -, ou ainda W Ukraine, de Piotr Pawlus e Tomasz Wolski, mas também Iron Butterflies, de Roman LiubyIt’s a Date, de Nadia ParfanWe Will Not Fade Away, de Alisa KovalenkoWalking UpIn Silente, de Mila Zhlutewnko e Daniel Asadi Faezi.

Apesar de ter sido ignorado pelo júri da Berlinale 75, acreditamos que Timestamp deixará a sua marca e poderá mesmo servir de referência para outros casos, em que à barbárie, ao conflito (e até mesmo ao populismo) não há melhor resposta do que o conhecimento e a formação. Será mesmo o melhor ‘carimbo do tempo’. Um carimbo que Keteryna Gornostai (tal com o companheiro, o editor do filme, Nikon Romanchenko) levará para sempre consigo, pois deu à luz um bebé em pleno festival.

Berlinale: Com surpresa, “Dreams” norueguês vence Urso de Ouro

0

Drømmer (Dreams (Sex Love)), o ligeiro drama romântico, do norueguês Dag Johan Haugerud, foi o vencedor do Urso de Ouro, o prémio mais importante do Festival de Berlim, ao passo que O Último Azul, de Gabriel Mascaro, recebeu o prémio do Júri. O chinês Huo Meng foi o Melhor Realizador.

Todd Hayes, o presidente do júri internacional, inscreveu Dreams, a terceira parte da trilogia Sex, Love, Deram, do norueguês Dag Johan Haugerud, no cartão de vencedor do Urso de Ouro da 75.ª edição do Festival de Berlim. O prémio está dado, mesmo que faça os sobrolhos a muitos jornalistas que acompanharam os 19 filmes a concurso nestes 10 dias de festival. A verdade é que esta narrativa pueril sobre o ‘primeiro amor’, estava longe das discussões da crítica internacional presente. Curiosamente, a primeira parte, Sex, foi sido exibida o ano passado na Berlinale, embora na secção Panorama. De referir que o filme recebeu ainda o prémio FIPRESCI, da crítica internacional.

Seguramente, um dos favoritos deste festival (por exemplo, pelos críticos que acompanharam o Cinema Sétima Arte), foi O Último Azul, de Gabriel Mascaro, recebendo o Grande Prémio do Júri (além do prémio ecuménico). Empolgante, a deriva, semi-distópica, de uma idosa (tremenda Denise Weinberg) que resiste ao aposentamento forçado e à entrada numa ‘colónia’ de idosos e embarca numa fascinante aventura pela floresta Amazónia. Já o desinteressante El Mensaje, do argentino Iván Fund, foi o novo Prémio do Júri.

No plano interpretativo (sem distinção de género), a principal distinção foi para a prestação fulgurante de Rose Byrne, em If I Had Legs I’d Kill You, de Mery Bronstein, levando aos limites o turbilhão psicológico e familiar que se vive no filme. Ao passo que a prestação secundária foi para Andrew Scott, no filme Blue Moon, do americano Richard Linklater, para alguns, o favorito à conquista do Urso de Ouro.

A premiação principal inclui ainda guião efervescente de Radu Jude, que inflama Kontinental ‘25, e o prémio de contribuição artística para o filme da francesa Lucile HadzihalilovicLa Tour de Glace.

"Blue Moon" (2025), de Richard Linklater
Blue Moon (2025), de Richard Linklater

Berlinale em balanço

Em jeito de balanço, não de pode dizer com grande segurança que a 75.ª edição da Berlinale tenha sido memorável. Independentemente das decisões do júri da principal secção competitiva, certamente as mais relevantes, ficamos com a sensação que deixou algo a desejar. É essa a sensação que fica do conjunto dos filmes selecionados para o concurso ao Urso de Ouro, o prémio do cinema mais importante depois da Palma de Ouro, em Cannes, e o Leão de Ouro, em Veneza. Não que seja algo da responsabilidade da americana Tricia Tuttle, a nova diretora do festival, embora ela própria tenha uma carreia de programadora de festivais.

A verdade é que a qualidade média dos filmes desta edição esteve longe de impressionar – veja-se a lista de pontuação média do Cinema Sétima Arte, onde mais de metade dos filmes tiveram uma pontuação a baixo dos 3 valores. Sendo que os três filmes com pontuação de Urso de Ouro (recordemos: a produção chinesa “Living the Land”, o filme brasileiro “O Último Azul” e “If I Had Legs I’d Kill You”) foram todos premiados. A maior ironia é que “Dreams” ficou abaixo (pela nossa pool) de uma classificação positiva. Lá está, é o trabalho democrático a funcionar. E que tem de adequar as opiniões de todos.

Timestamp, de Kateryna Gornostai.

A terminar, uma nota final, para reforçar que se esperava muito desta edição – sobretudo que Berlim pudesse dar uma mensagem politicamente cinematográfica ao mundo, em vésperas de eleições fulcrais. Infelizmente, os resultados não impressionam. Fiquemo-nos com a verve de Radu Jude (que deixou no cartaz com o seu rosto, à entrada da sala principal, no Berlinale Palatz, a mensagem muito direta: “FUCK PUTIN + TRUMP!” Até o justo documentário Timestamp, da ucraniana Katerina Gornostai (ela foi mãe há quatro dias), sobre a vida escolar nas cidades perto das zonas da frente, passou despercebido ao júri.

Para o ano há mais.

Palmarés Berlinale 75

Urso de Ouro – Melhor Filme
Dreams (Sex Love)

Urso de Prata – Grande Prémio do Júri
O Último Azul

Urso de Prata – Prémio do Júri
The Message

Urso de Prata – Melhor Realização
Living the Land

Urso de Prata – Melhor Atuação Principal
Rose Byrne, por If I Had Legs, I’d Kick You

Urso de Prata – Melhor Atuação Secundária
Andrew Scott, por Blue Moon

Urso de Prata – Melhor Argumento
Radu Jude, por Kontinental ’25

Urso de Prata – Melhor Contribuição Artística
The Ice Tower, de Lucile Hadzihalilovic

Berlinale: Digerindo os diferentes sabores da competição

0

Já na reta final da 75.ª edição da Berlinale (termina no dia 23, no dia das eleições alemãs), complementamos algumas notas de um punhado filmes ainda não mencionados na nossa cobertura. Entre os mais recentes e alguns vistos já há alguns dias, entre surpresas, mas também deceções. Recuperamos assim Ari, Dreams, El Mensaje, Reflet Dans un Diamant Moet, complementando com os recentes Kontinental ’25, Drømmer e Yunan.

Deste lote, apetece destacar Ari, um poema discreto sobre o encanto dos pequenos detalhes, das coisas escondidas no turbilhão do quotidiano. Este terceiro filme da francesa Léonor Serraille respeita de forma profunda o tremendo investimento emocional e fragilidade de Andrianic Manet, um ator relativamente desconhecido, mas que terá de estar na short list para o prémio de interpretação (sendo que este é um único prémio, sem distinção de género).

Seja como for, é logo avassaladora a cena em que este professor do 1.º ciclo se confronta com uma aula da pré-primária onde tenta interessar as crianças por um poema do poeta surrealista francês Robert Desnos… Se esta missão acaba por revelar-se um desafio falhado à partida, embora com uma enorme compensação dramática, o espectador acaba recompensado com uma abertura para uma sensibilidade aguda de Ari. De uma forma discreta, quase tímida, Sérraille revela através de Manet a beleza escondida nos detalhes, no universo de coisas que as crianças têm para nos ensinar – só temos de dar-lhes alguma atenção. Talvez assim estejamos mais perto de perceber o cinismo escondido dos outros, sejam amigos ou não.

“Ari” é um filme pequeno, sobre o gigante Ari, que não tem pressa de crescer. Essa visão e esse foi um dos momentos mais intensos, porque tão inesperado, vividos na Berlinale.

Dreams, do mexicano Michel Franco, acabou por ficar aquém do esperado, sendo até, no nosso entender, uma das deceções da competição ao Urso de Ouro, isto apesar de ter sido bem recebido por uma boa parte da imprensa acreditada. Apesar do respeito pela carreira de Franco, que temos seguido há vários anos, parece-nos que suscita questões menos interessantes. Em pano de fundo, o romance entre um bailarino mexicano, sem documentação de residência – aqueles que Trump tem sob a mira da deportação -, e a filha de um mecenas de San Francisco que aposta numa escola de dança local. Conhecemos Fernando (Isaac Hernández, principal figura do American Ballet Theatre), na cena inicial a bordo de uma carrinha no final após o ‘salto’ da fronteira. A aridez dessa cena poderia até fazer-nos pensar que este seria um filme vincado sobre esse problema. Mas não. Depois de chegar a San Francisco, Fernando introduz-se na mansão de Jennifer (Jessica Chastain, numa segunda colaboração com Franco). Na verdade, este filme será mais uma provocação sobre o sistema capitalista, marcado aqui pelo abismo social entre este casal, mas que se reencontra nas cenas de um erotismo exacerbado. Aqui, Franco e Jessica mostram audácia. Por exemplo, quando a atriz de Hollywood se atira a uma cena de sexo, anunciando ao companheiro “vou chupar-te os tomates, mas não te vou tocar na pila. E tu vais aguentar!” Assim.

No entanto, nestes dreams conta mais a aspiração e o talento de Fernando, do que, propriamente, o amor e a dedicação de Jennifer. Ficando a sensação de que se perdeu a oportunidade de fazer algo novo. Isto, claro, à exceção da ousadia sexual. Em sonhos…

Os outros

Não nos ficou na retina, a mensagem dos poderes especiais da menina que comunica com as alminhas dos animais, em El Mensagem, do argentino Iván Fund. Este é um road movie, fotografado a preto e branco (sem que se perceba o motivo), onde os pais da criança são, naturalmente, os gestores dessas rentáveis consultas.

Infelizmente, também, o filme em que esperávamos apreciar a prestação de Maria de Medeiros, Refect dans un Diamant Mortda dupla Hélène Cattet e Bruno Borzani, não nos deixa muito espaço para a saborear, já que se remete a pouco mais de uma cameo (uma curtíssima aparição) que não a serve. Fica, ainda assim, a tentativa de homenagem ao universo da saga ‘James Bond’, embora esbanjada em opções estéticas que limitam o filme.

A este conjunto, acrescenta-se a mais recente produção do romeno Radu Jude. Ainda assim, à simplicidade orgânica narrativa que nos habituou este cineasta, e, acutilância também, Kontinental ’25 fica aquém de alguns dos seus trabalhos anteriores. Desde logo, “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, o vencedor do Urso de Ouro, em 2021, a edição da Berlinale, em confinamento online, bem como o “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo”. Estes, claramente, num patamar muito superior.

Vimos ainda o simpático poema romântico Drømer (ou Dreams, o segundo), a terceira parte da trilogia do autor e realizador norueguês Dag Johan Haugerd (Love, Sex e Dreams, a primeira parte foi apresentada o ano passado em Berlin, na secção panorama, e a segunda, ainda este ano no festival local, em Tromso). A paixão pueril que a jovem Johanne sente pela professora floresce num projeto de romance, mas que acaba por despoletar incompreensões pela mãe e avó. Seria até um filme ‘companheiro’ de Blue Moon, pois vive igualmente da palavra, seja dos monólogos interiores e Johanne ou as suas palavras já escritas. Só que a tremenda elevação do filme de Richard Linklater torna a comparação injusta.

Por fim, Yunan, do jovem cineasta de 33 anos, Ameer Fakher Eldin – atenção agora, nascido em Kiev, de pais sírios, dos Montes Golan, e radicado em Hamburgo -, chegou-nos uma pequena surpresa (que se poderá até intrometer nos prémios). Dir-se-ia um cinema de um veterano, aquele que acompanha o momento de “pausa” de um autor árabe antes de contemplar o suicídio. Será numa região frequentemente inundada que encontra esperança na simplicidade de Hannah Schygulla, uma das grandes vedetas do cinema alemão, em geral, e do cinema de R.W. Fasbinder em particular.

Assim vai o festival. Os prémios são no sábado.

‘Blue Moon’: Um gajo entra num bar…

0

Um gajo entra num bar. Não dois, não três. Ele é Lorenz Hart, uma sumidade da Broadway, e a parte mais poética da dupla Rodgers e Hart, responsáveis por temas de sucesso como Lady is a Tramp, My Funny Valentine, Bewitched, Bothered and Bewildered ou ainda, claro, Blue Moon. Aparentemente, não o tema preferido do seu autor.

Sim, “Blue Moon”, o filme de Richard Linklater, exibido na seleção competitiva da Berlinale, capta esse momento central na vida de Hart. E esse momento tem uma data – o dia 31 de março de 1943, a noite de estreia de Oklahoma!, um musical com um tema rural, em plena guerra mundial, que considerava menor qualidade – sem o humor, o amor e a ousadia que tanto apreciava. Essa uma noite de desatino e azia para Lorenz, após assistir à estreia do musical que não quis fazer com o compositor Richard Rodgers (Andrew Scott). Este, muito mais interessado num trabalho constante, sem as suas constantes recaídas, acabaria por iniciar com esse show uma nova dupla com Oscar Hammerstein, com quem alcançaria diversos sucessos durante os anos 40 e 50, incluindo, por exemplo, o musical da Broadway The Sound of Music (e que teve a adaptação ao cinema, em 1965, por Robert Wise, com o sucesso que todos conhecemos).

O filme é então esse momento. Em que Lorenz entra no bar Sardi’s, na verdade um restaurante na ‘Theatre District’, em Manhattan, um ponto quente da nata da Broadway e de todas as celebridades e aspirantes a estrelas. O ponto ideal para se auto comiserar com os seus próprios infortúnios. Algo que irá partilhar em conversas com o barman (Bobby Cannavalle), o pianista e o jornalista escritor de livros infantis E.B. White (Patrick Kennedy). Mas também com Rodgers, onde se sente a semente da ruptura. Como o próprio dizia, dando azo às palavras sacramentais do casamento, “para o melhor e para o pior”, assumindo que estaria agora a viver “o pior”.

Isto apesar de assumir as suas tendências homossexuais, precisando que não haveria algo mais belo que um pénis a meia ereção – pois a um membro teso comparava ele um ‘ponto de exclamação’! Por outro lado, Lorenz sofria também com a impossibilidade do amor, desde logo, o amor assolapado por Elizabeth Weiland (Margaret Qualley) – o seu “cigarette heart”, como dizia – embora o amor que retornasse fosse sob a forma de respeito e admiração.

Talvez faça sentido puxar para “Blue Moon” o paralelismo entre a importância dividida entre as canções de Hart e a música de Rodgers. Desde logo, o peso que tem aqui a vibração do guião assinado por Robert Kaplow, assente nas frases do letrista, e que lhe dão toda a espessura. O autor de “Me and Orson Welles”realizado por Linklater em 2008, entrelaça com justeza essa tapeçaria. Talvez até de uma forma que o próprio Linklater não consegue devolver numa realização demasiado apertada no espaço e que, necessariamente, se tem de vergar ao texto. E à interpretação de Ethan Hawke, embora, diga-se, a sua força esteja mais no texto, sendo Ethan o seu fiel intérprete.

A Linklater cabe então o papel da ‘composição visual’ e da mise-en-scène, já se disse, limitada ao espaço do bar. Há ainda um aspeto, mais risível, pelo trabalho que Linklater teve de fazer para vergar Hawke à altura atarracada de Lorenz Hart. O que nem sempre funciona.

Ok, claramente, este não é um filme onde os homens se medem pela altura, mas pela sua verve, ou não fosse este um filme cheio de quotes que farão as delícias dos cinéfilos. E haverá melhor filme de belos momentos escritos que “Casablanca”? (curiosamente, apresentado ainda este mês no ciclo Michael Curtiz, na Cinemateca Portuguesa). E qual a melhor frase? “A precedent is being broken/Está a quebrar-se um precedente” proferido com tanta ironia por Claude Rains, embora acrescentando a concorrência do momento em que Bogart se queixa com azedume “no one ever loved me that much”.

Seja como for, talvez o maior quote do filme fique mesmo guardado para o final, já à saída do bar, quando alguém pede ‘mais uma música para o caminho’, ao que o pianista devolve o tom de blue moon, you saw me standing alone, without a dream in my heart, without a love of my own.

The end.

‘O Último Azul’, de Gabriel Mascaro: um ‘boat movie’ que navega o direito à resistência

0

Se o Festival de Berlim terminasse agora, já haveria motivos para a atribuição de um Urso de Ouro. Mesmo que O Último Azul não almeje o estatuto de obra-prima (nem o prémio máximo da Berlinale isso exige), o filme deixa espaço de sobra para que Gabriel Mascaro use cinema como um veículo potente e belo para passar ideias e deixar à discussão temas sociais e políticos da sociedade brasileira. Isto sem que o realizador de Boi Néon (2015) e Divino Amor (2019), ambos os filmes apresentados na Berlinale, se desvie da ideia da obra de arte.

Tem sido comentada, aqui no festival, a evocação no filme de um lado distópico. Contudo, não nos parece acertado. A menos que fosse encarado um prolongamento do governo Bolsonaro. Um helicóptero vai difundindo uma mensagem de propaganda governamental, sempre no habitual tom religioso, saudando que “o futuro é para todos”. E a sua aplicação prática é a condecoração de idosos, ou seja, mais do que 75 anos. “Mas desde quando ficar velho é uma honra?” Quem o reclama é Teresa (Denise Weinberg numa magnífica interpretação), do alto dos seus 77 anos. Só que a sua vontade já foi hipotecada.

Nesta nova realidade, o controlo e limitação de liberdade é escondido sob uma forma de descanso na ‘colónia’, uma variante de asilo de idosos, pois estipula-se que os visados não terão capacidade para gerar um sucesso económico. Alguns até desejam uma entrada precoce na colónia, pois já perderam a fé no mundo (e no futuro); outros são removidos compulsivamente pelo cata-velho (uma variante humana das motos que catam cães vadios); mas há ainda outros, como Tereza, que se dão ao luxo de reclamar: “Vou descansar forçado, é?”

Tereza é apanhada pelo ‘cata-velho’.

Mascaro encara nesta mulher o direito à resistência, de recusar o uso de fralda, de decidir o seu destino e procurar fazer o que ainda deseja fazer. Como andar de avião. Depressa percebe que a sua guarda (e os seus movimentos) pertence agora à sua filha (Clarissa Pinheiro), o que lhe impossibilita a deslocação sem apresentar documentos. Decide então fazer a sua viagem de descoberta por barco.

É aí que Mascaro faz uma vénia ao Herzog, de “Fitzcarraldo”, com Tereza a rumar, rio acima, na mesma deslumbrante região amazónica. Pelo caminho cruza-se com algumas personagens notáveis, sendo uma delas um irreconhecível Rodrigo Santoro, no papel do barqueiro alucinado, Cadu, sobretudo quando usa as gotas de baba azul de um caracol raro que lhe faz ver o futuro. A outra personagem é Roberta (Miriam Socarras) uma argentina ateia, vendedora de bíblias digitais (com bateria de uma vida inteira).

“O Último Azul” encontra assim a sua magia neste ‘boat movie’ (pois a estrada é o rio), ao longo da região lacustre da Amazónia. Precisamente onde o saudoso José Barahona filmou “Nheengatu”, em 2020, no mesmo (adivinha-se) Rio Negro, perto das comunidades indígenas. Como se percebe, este é também um filme que nos vive paredes-meias com a miséria. Mas também com a possibilidade de libertação e a procura de uma felicidade sem idade.

Em “O Último Azul”, não se puxa um barco através da montanha, como Herzog. Pelo contrário, Mascaro embala-nos ao longo do curso sinuoso deste rio. Sempre ao ritmo do fascinante jogo eletrónico de Memo Guerra. O cata-velho que se dane!

‘Mickey 17’: Homens para queimar, cinema para reciclar

0

“They were expendable”, assim reza o título do filme do John Ford, realizado há precisamente 80 anos. Isso mesmo, no ano do fim da 2.ª Guerra Mundial. O que isto tem a ver com Mickey 17? Isso. Rigorosamente nada. Mesmo que à personagem de Robert Pattinson diga bastante, pois é esse o seu destino, a reciclagem. Então e o filme é bom? Not.

Compreende-se a necessidade de filmes comerciais (e com buzz) nos festivais. Depois da presença de Timothée Chalamet, eis que Robert Pattinson garantiu o bruá dos fãs e em redor da Berlinale. Só que o coreano Bong Joon-Ho não criou apenas um Mickey/Pattinson. Mesmo que a sua personagem seja a de um pateta simplório. Imagine-se então 17! Ou melhor 18. Mas já lá vamos. Mesmo que o romance de ficção científica de Edward Ashton, que dá origem ao guião adaptado, o tenha definido para esta estreia que promete fazer sensação, em formato IMAX, já a partir de dia 6, num cinema perto de si.

Sim, voltamos aos pecados do capitalismo e a um mundo que cessou de digerir todo o mal feito e se tornou inabitável. Percebe-se a filiação de Bong pelo universo de um futuro inventivo, como nos convenceu em Snowpiercer (2013) e até em Okja (2017), o filme que pôs o Festival de Cannes a debater a legitimidade de um filme da Netflix na sua competição oficial. Claro que isso já foi há muitos anos. Hoje o mundo é diferente.

É aí que ganha corpo a peregrina ideia de habitar um novo planeta – Niflheim.

Assim se gera a expedição que levará uma nova comunidade de seres humanos prontos a povoar, promovida pelo magnata timoneiro, Kenneth Marshall, em que Mark Ruffalo se entretém a fazer uma reciclagem conjunta entre Trump e Musk. E, diga.se, sai-se bem nos esgares. Pormenor, Pattinson (ou seja, Mickey) esqueceu-se de ler o contrato e aceitou ser um expendable / descartável / reciclável. Um efeito produzido graças a uma impressão biológica que permite reunir e reintegrar os elementos biológicos (memória acompanhada) do ser. E como se adivinha, várias vezes será o Mickey devolvido a sucessivas ‘impressões’. Depois de ser devidamente incinerado, claro. Isto até um bug produzir um outro, a versão número 18, mais agressivo e que com ele viverá uma boa parte do filme. Mas mais para criar todas as situações em redor desse efeito de réplica, do que propriamente para conferir um significado especial a esta grande produção da Warner orçada em 150 milhões.

Pena é que semelhante dispositivo esteja apenas disponível para este sacrificado, e não a um número alargado de indivíduos, de modo a almejar um futuro interminável para a humanidade. Não é esse o propósito do filme. A ideia que fica vincada é a de expansão, como num western de ficção científica. Não de John Ford, claro. E lá estão até as criaturas fofas, tão próximas de Okja, ainda que se pareçam também um misto de búfalos na pradaria e uma variante de escaravelho fofo para a cena final de ataque a essas criaturas expulsando-as da sua terra. Do seu planeta.

Claro que o filme é visualmente exuberante, mesmo que não nos ofereça nada de novo. Aliás, não se esperava nada menos de Joon-Ho. O problema é que o filme não devolve todo esse investimento em ideias, ficando entalado nessa reciclagem de um pobre Mickey engasgado entre sucessivas vidas. E sem conseguir responder à magna pergunta que todos lhe fazem: então e como é morrer?

O que fazer desta vontade de clonar ou reciclar personagens e figuras no ecrã, mesmo com um dedo tímido apontado à voracidade do capitalismo? A solução mais compensadora será (porque não?) voltar a Ford. E ao destino marcado de um esquadrão de fuzileiros no pacífico, a bordo de lanchas rápidas, na ressaca imediato ao ataque a Pearl Harbour.

‘A Melhor Mãe do Mundo’: entre o abuso e a liberdade

0

A Melhor Mãe do Mundoa nova entrega da brasileira Anna Muylaert, explora novos contornos de um cinema emotivo e familiar, de certa forma na linha de Que Horas Ela Volta (2015) ou Mãe Há Só Uma (2016), por sinal, dois filmes exibidos na Berlinale.

Regressa agora um novo drama social ao abordar a violência doméstica e o abuso patriarcal, através da decisão de uma mulher em denunciar o companheiro de maus tratos e decidir (não se algumas hesitações) seguir sozinha a sua vida com os seus dois filhos. Seguramente, um registo onde se sente que esta mãe encarna em si própria os traumas de tantas brasileiras. Mas é também essa energia desmesurada, devolvida com uma entrega integral por parte da atriz Shirley Cruz que marca, desde já, uma interpretação feminina que o júri terá de contemplar.

O seu nome é Gal. Ela é uma verdadeira mãe-coragem que carrega pelas ruas do Rio de Janeiro produtos reciclados que irá trocar por um punhado de reais que lhe permitem continuar a viver e tomar conta dos seus filhos. Tremendo é o quadro em que Gal avança avenida acima, no meio do trânsito caótico, puxando a carroça como se fosse um animal de carga. Essa imagem de esforço e determinação ficar-nos-á na memória.

Quando repara que o namorado levou os filhos de casa dela, percebe que terá de os recuperar e escapar a mais uma sessão de violência conjugal por parte do namorado Leandro. E onde o efeito da bebida era normalmente complementado por sexo e violência. Fará até todo o sentido explicar que esse papel é interpretado com muita convicção pelo cantor e artista (mas também ator), Seu Jorge, ele próprio que contempla as diversas facetas da mulher nos seus temas.

Aliás, é precisamente com uma queixa aos serviços sociais que começa este filme que nos devolve ao significado mais básico de ser mãe. Em particular no momento da fuga deste pequeno agregado pela cidade que se transforma numa autêntica e inesquecível aventura.

Pela sua dimensão onírica e terrível ao mesmo tempo, torna-se agradável reconhecer como aceita a comparação à sequência mais memorável do filme Night of the Hunter/A Noite do Caçadoro clássico (e obra-prima!) de Charles Laughton, de 1955. Em grande parte, pela ocupação que as crianças fazem desse espaço geográfico, habitado por elementos fantásticos, quase de terror, embora privilegiado pela liberdade de conquistar a cidade. Seja quando dormem ao relento (ou melhor, fazem campismo, no dizer da mãe), apenas tapados com um plástico por cima, mas igualmente pelas personagens que conhecem na rua. Exatamente como em “Night of the Hunter”.

É também aqui que a câmara de Muylaert reivindica o seu espaço, contemplando estes seres que são, ao fim de contas, o lado humano, também ele reciclado, nas franjas da sociedade. E que se sabem reencontrar, nem que seja em redor de um churrasquinho, cervejas e samba.

Mesmo sem ser um grande filme, pois nunca assume deixar de ser mais do que um melodrama bem-intencionado, “A Melhor Mãe do Mundo” é um conto social que importa reter. Sobretudo pela demonstração de amor e proteção de uma mãe coragem.