Não estaremos longe da verdade ao afirmar que o cinema do romeno Cristi Puiu funciona como um todo orgânico. Foi assim em A Morte do Senhor Lazarescu, vencedor em 2005, do prémio Un Certain Regard, tomando o estilo de uma comédia negra, mas também no mais duro, mas igualmente fascinante, Aurora, que em 2010 afirmou o realizador romeno com a deriva de um homem comum que nos colocará algumas surpresas e crimes pelo caminho. E, como quase sempre, esse caminho faz-se com esse conjunto de pessoas, atores, personagens imbuídos num exercício comum que parece ter começado antes do realizador dizer “acção!” e que se prolonga mesmo depois do “corta!”. Sieranevada, a sua primeira entrada na competição em Cannes, não é diferente. Desde logo, também, pela singularidade do título que não encontra no filme qualquer apoio imediato, nem sequer com a realidade. Mas que nos fascina, isso sim. Mesmo para quem tenha de superar po desafio de cumprir as suas quase três horas de duração.
Tal como outros eminentes criadores da fértil ‘nova vaga’ do cinema romeno, Puiu exulta com as personagens vivas, largas, com o núcleo familiar e seus acessórios a destilar os seus melhores e piores momentos. Como sucede neste apartamento apinhado de familiares de um defundo, de quem se cumpre uma espécie de missa do mês de falecimento, com a particularidade de ser filmado em tempo real. Oportunidade para muitos se reverem, falarem comerem, em conversas trocadas, como um novelo, mas também a moldura para fixar alguns momentos que nos dizer mais sobre a natureza humana.
Um casal viaja de carro e discute sobre particularidades de banais de um vestido comprado na Euro Disney para uma das filhas, o mesmo casal que, mais adiante, terá um episódio de tráfego com vizinhos mal humorados, ao passo que em casa, a mãe e viúva preparou a refeição, onde na verdade se passa grande parre do filme; há ainda uma croata embiragada que é levada para fora, algumas revelações e segredos por revelar, mas sem que isso contribua para a narrativa. Tal como a memória do ente defundo não serve mais do que o propósito de uma reunião de família como tantas outras.
Entre as mais de uma dezena personagens, torna-se difícil, se não mesmo impossível, individualizar protagonistas, apenas seguir este tecido de histórias que nos permitem partilhar desta reunião de família. É essa dinâmica orgânica em que tudo funciona como um todo que mais nos fascina no cinema de Puiu.
É esse o desafio do espectador, abrir caminho por entre estra narrativa caótica e criar o tal espaço de conforto que acaba por reflectir-se num inesperado momento de grande cinema. Onde a técnica de uma câmara que parece saber montar os pedaços de cenas que capta para dar corpo a um filme espesso e arrebatador, ainda que sem a consistência e unidades de Aurora, mas ainda assim merecedor da exibição da secção oficial para a Palma de Ouro.