Terça-feira, Outubro 8, 2024
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Gaspar Noé: “Queria que o meu filme cheirasse a sexo”

É claro que Love é um filme politicamente incorrecto. É claro que fala de sexo e mostra como se faz. Até aqui nada de novo, é claro. Gaspar Noé cita, bem a propósito, O Império dos Sentidos, como uma das referências do cinema erótico. Se bem que Love salvaguardadas as devidas diferenças, mereça igualmente esse destaque, de marco do cinema erótico. Naturalmente, o efeito 3D permite-nos um contacto diferente com estas personagens à procura do amor. Ou dos seus limites. É claro que também pela ousadia, de mostrar uma ménage a trois, bacanais e até uma cena com um travesti, mas sobretudo por não ceder ao exploitation do género. A única excepção será, talvez, a tal ejaculação que pare vir direitinha a nós…

O cinema de Gaspar Noé tem qualquer coisa de arrebatador que se torna irresistível. Recordamos bem a célebre primeira exibição de Irreversível, em 2002, no festival de Cannes, em que bem mais de metade da sala sucumbiu diante da violência destilada. Não só resistimos como tivemos ainda de arrancar uma entrevista com este enfant terrible, que logo admitiu que o projecto inicial oferecido a Monica Bellucci e Vincent Cassell era um em que ambos iriam fazer amor a sério no ecrã. Já se sabe que as coisas não foram bem assim. Como, de resto, recorda na nossa saborosa conversa numa das sala do cinema S. Jorge, em Lisboa.

Encontrámo-nos pela primeira vez em Cannes, para a entrevista do filme Irreversível, um momento bastante intenso. Mas lembro-me de já nessa altura falou de algo semelhante a este projeto, possivelmente envolvendo Monica (Bellucci) e Vincent (Cassel). Está lembrado? Foi essa a origem de Love?

Gaspar Noé – Não, eu concebi este projeto antes mesmo de Irreversível. É que, depois de Seul Contre Tous (a sua primeira longa, de 1998) quis fazer Enter the Void – Viagem Aluciante. Só que esse era um projeto muito dispendioso, por isso, pensei em algo low budget que pudesse filmar em Paris de forma rápida. Escrevi o primeiro tratamento de Love – na altura chamava-se Danger -, e mostrei-o ao Vincent e à Monica. Antes de lerem as cinco páginas do tratamento disseram-me que sim, mas quando o leram disseram que não, mas que, ainda assim, estariam disponíveis para outra coisa. Foi nessa altura que cheguei à ideia de Irreversível. O problema é que tinha de preparar o filme em cinco semanas e não tinha guião. Quando começámos a filmar Irreversível tinha apenas três páginas…

É interessante referir Enter the Void, porque me parece que entre estes filmes todos existe algo orgânico que os une…

Sim, estes três projetos foram concebidos ao mesmo tempo.

Como uma espécie de trilogia?

Muitos cineastas concebem três projetos de uma só vez, talvez a pensar nas dificuldades de financiamento para todos os filmes. É como uma espécie de segurança, caso um deles não possa avançar. No entanto, é interessante porque em todos os filmes, a personagem masculina é semelhante – o Vincente Cassel, em Irreversível, o Nathaniel Brown, em Enter the Void – Viagem Alucinante, e Karl Glusman, em Love – é sempre um tipo alto e bem-parecido, que só quer fazer festa, tomar drogas e fazer amor com a sua miúda. Pode não ser muito inteligente, mas é um tipo cool que vive o momento. Eu quis mesmo que fossem parecidos fisicamente.

Será de certa forma essa uma aproximação biográfica de Gaspar Noé?

É algo mais natural, porque eu tenho uma identidade que mostro nos meus filmes, mas no caso destas personagens eles são mais comuns. Por isso quando me perguntam se este é um filme sobre mim próprio, eu digo que sim, em parte. Digamos que é mais a história de um irmão mais novo, algo que eu posso aprovar ou não, mas que reconheço me ser próxima.

Poderemos dizer que o ponto de partida para este projeto foi filmar um casal a fazer amor da realidade?

Pelo menos, o que eu queria era ver no ecrã imagens que me parecessem reais do que é fazer amor na vida real. Queria imagens carnais que cheirassem a verdade, queria que o filme cheirasse a sexo na vida real. Normalmente, quando vemos sexo no ecrã normalmente não é bem interpretado, ou quando é parece algo distante. Não vemos aqui um estilo de género, mesmo de filmes eróticos do passado com emoções prolongadas. Normalmente essas cenas são breves.

Quer dar um exemplo do que não vemos normalmente?

Por exemplo, nunca vemos um filme em que uma mulher faz amor durante a sua menstruação. Há muitas coisas que acontecem na vida real, mas que estão totalmente ausentes do cinema erótico clássico ou cinema porno clássico ou moderno.

Concebeu algum tipo de limites a este projeto, limites que se impusesse? Ou deixou ao critério dos atores?

Talvez com a exceção de uma cena que acharam que seria um pouco mais excessiva, como fazer sexo com outro rapaz, embora tenha evoluído depois para um travesti. De resto, tudo o que vemos no ecrã é algo que eu já vi ou que amigos meus experienciaram. Quis fazer algo que fosse absolutamente normal.

De qualquer forma, a cena do travesti será talvez a mais ousada, não?

É aí que eles percebem que ultrapassaram os seus limites. Para além do que eram as suas intenções iniciais. É como aquela concepção de amor que algumas pessoas dizem: ‘aquilo que não mata o casal deixa-o mais forte’. Mas há experiências em que se acaba por perder a intimidade.

Penso também que se percebe que o ator estaria a atingir os seus limites enquanto ator…

Ambos os atores não são nada exibicionistas ou adictos sexuais. São bastante normais. Acho que ambos embarcaram nesta experiência sabendo ao que iam e talvez até exorcizar algumas feridas do passado. De resto sabiam que iriamos fazer um filme sore a vida real. Nesse sento foram muito bravos, pois sabiam que independentemente do resultado final estas imagens acabariam por aparecer na net. Mas ajudou o facto de ambos terem famílias inteligentes, pois iriam expor-se. De resto, o que eu queria era encontrar pessoas carismáticas, mas também inteligentes.

Isso leva-me a perguntar-lhe: como decorreu o casting? Foi difícil encontrar este casal?

Inicialmente, queria encontrar um casal, pois seria mais fácil, ou um ex-casal, mas acabei por não conseguir ou conseguir que fosse credível. Como sou muito instintivo, não acredito muito em fazer através de um diretor de casting, por isso fui mais a bares e a festas perguntando a amigos se conheciam alguém com esse perfil. Conheci alguns via Skype e percebendo se funcionariam bem no filme ou não. A verdade é que nunca tinha visto o Karl nu antes do primeiro dia de rodagem. Na primeira cena de nu, a rapariga disse-me que ele estaria bem no filme. Apenas lhe perguntei se tinha pelos púbicos, não ensaiamos nada. O único ensaio foi ele a apresentar-se às raparigas no filme e perceber se a comunicação funcionava.

Nesse sentido, o sexo era improvisado?

Sim, foi tudo improvisado. Mas não a história, pois tinha seis páginas escritas, mas nos diálogos durante essas cenas ou a posição da câmara foi tudo recriado no set e com um mínimo de pessoas. Embora com a noção de que queríamos algo que aparecesse muito sensual no ecrã.

Como decorreu a rodagem, de forma cronológica iniciando com aquela longa cena inicial de masturbação?

Por sinal, essa cena não deveria estar no início. Aconteceria mais para o meio do filme e abrandaria o seu ritmo. Ao coloca-la no início durante a montagem a ideia era poder pensar que era um sonho que ele estava a ter. Era uma cena que não estava no guião e que filmámos no final. Todas as outras cenas de sexo foram filmadas durante a primeira semana. Isto tudo com uma equipa de 12 pessoas, mas durante essas cenas apenas 3 ou quatro pessoas.

Estava clara a ideia da fronteira da pornografia?

Claro. De resto, para mim a cena mais erótica e que queria era sobretudo apanhar era um close-up dos rostos quando se estavam a beijar na ménaje a trois. Quando vi A Vida de Adele (do Abdellatif Kechiche, Palma de Ouro em Cannes, em 2013) achei que os beijos e abraços eram mais sexy que as senas de sexo. Por vezes, essas cenas são mais sexy do que mostrar os genitais.

Por isso acho que a palavra ‘Love’ é mais ajustada a este filme do que, por exemplo, ‘Sex’…

Quando temos cenas de sexo na vida real, podemos estar a apreciar a cara, as orelhas ou o pescoço da pessoa com quem estamos a fazer sexo, e não estamos a olhar para baixo.

Que tipo de inspiração teve para este filme? Reparei que no final do filme tinha agradecimentos a Nicolas Winding Refn, a Scorsese, ao (Kôji) Wakamatsu…

Sim, o Wakamatsu (conhecido também pelo seu cinema erótico e até pervertido) foi de certa forma uma inspiração. Mas não apenas ele, que fez grandes filmes com cenas de sexo, mas produziu, por exemplo, O Império dos Sentidos, do Oshima. Outros dos agradecimentos que fiz foi por me terem ajudado, por me terem colocado em contacto com outros; ao Carpenter agradeço o facto de me ter dado os direitos da sua música; o David Lynch também aceitou oferecer-me os direitos para uma música que queria usar no final, mas achei que poderia atrair demasiada atenção, por isso acabei por usar o Bach pelo Glenn Gould, as Variações Goldberg. Diria que as inspirações foram mais de cenas da vida real e ainda exemplos de filmes em 3D que não funcionaram. Quando recebi o subsídio para fazer o filme me 3D percebi que não queria correr os mesmos riscos dos realizadores que vieram antes de mim, como por exemplo, uma montagem rápida, que não funciona, bem como uma câmara mais móvel.

Quais foram então os filmes em 3D que mais o inspiraram?

Foi o Pina, do Wim Wenders, Gravidade, porque é feito com longos planos, mas também os filmes em 3D antigos, como o House of Wax (Máscaras de Cera, de 1953) ou mesmo a reedição em 3D de O Feiticeiro de Oz, também por ser feito com planos longos. Ou seja, não estava a copiar ninguém, estava a tentar evitar erros de outros que fizeram mais filmes em 3D. Houve ainda um outro filme que teve semelhanças com o meu, mas que o vi apenas na fase final. Alguém aconselhou-me a ver o Bad Timing/Fora do Tempo (1980), do Nicholas Roeg…

Mencionou o filme do Oshima (O Império dos Sentidos), que será, a meu ver, até Love, o filme mais sensual e intenso…

Sabe o que ajuda esse filme, é que se trata de um filme de época japonês, com guarda-roupa, que na Europa é considerado um filme de arte asiático, o que não é o caso no Japão. Foi banido durante muitos anos, depois veio com uma cópia com cortes. Não sei se alguma vez irão editar uma versão completa no Japão. No entanto, passa na televisão francesa com frequência. Não me lembro de ver cenas de sexo explícito apresentadas com alegria num contexto normal.

Pois é, não há mesmo…

Nesse sentido, O Império dos Sentidos acaba por funcionar como uma referência, pois é um filme muito sensual e com cenas explícitas que foram exibidas num contexto comercial. É um filme com várias cenas muito boas e é baseado numa história verídica. Pena é não ter um final positivo.

Ficou com a sensação de que filmar em 3D não era assim tão difícil? Foi uma experiência difícil para si?

O que foi difícil foi não perceber o tempo para carregar a câmara, mudar as lentes. Por isso acabámos por fazer o filme todo com uma lente e fizemos o zoom na pós produção. Há vários aspectos técnicos do 3D que são demasiado pesados, como as steady cameras. Tive de mudar 3 vezes de operador, apesar do problema ser mais o peso do que operar com ela.

Qual era o efeito que procurava ampliar com o 3D neste filme?

Quando vemos o filme em 3D não podemos deixar de sentir alguma estranheza. Se o contraste estiver correcto e as luzes brilhantes assemelha-se quase a um espectáculo de marionetas do que se fosse em 2D. Por outro lado, a visão não é tão real, porque sublinha essa profundidade. Por outro lado, temos os óculos que lhe dão uma dimensão maior de sonho. Sobretudo quando não temos legendas, porque parecem flutuar no espaço do um ecrã em 3D. De certa forma é como se essa proximidade que o 3D proporciona fosse quebrada por essa intromissão de texto flutuante.

É claro que temos aquela cena de ejaculação na direcção do espectador. Foi uma intenção de provocar o espectador?

Na verdade, quando terminei Enter the Void, foi na altura em que Avatar estreou. E várias pessoas me disseram que era um apena não ter rodado Enter the Void em 3D. Porque já aí existia uma cena de um pénis em ejaculação, mas que acabámos por não rodar. Por isso, desta vez essa cena estava prevista. Na verdade, temos duas imagens do pénis a ejacular no ecrã; a primeira é a que foi filmada com um verdadeiro ator no primeiro dia de rodagem, mas usei também parte do que já tinha filmado antes.

Confesso que lhe queria perguntar isto desde que vi o filme pela primeira vez: fez algum casting de pénis?

Não, é mesmo o pénis do ator. É claro que já me perguntaram se usei algum ator americano para o dobrar nas cenas dele, por ser circuncisado. Isto porque 8% dos americanos são circuncisados. Mas isso não era um problema para mim. Apenas queria um ator que falasse inglês. Por acaso foi um actor americano, mas apenas por acaso.

Estava ciente de que este filme seria de difícil venda no mercado mainstream?…

Sabia que não seria fácil, mas não esperava que o filme fosse banido em alguns países. Por exemplo, na Rússia o Irreversível estreou em sala, que é bem mais chocante. Apesar do filme ter sido comprado, foi banido pela censura e até o ministro da cultura russo veio dizer que enquanto ele fosse ministro este filme não seria exibido na Rússia. Na Turquia Irreversível foi um blockbuster, mas este nem sequer foi proposto à censura, porque se sabe que com este governo nunca irá passar. Não percebo, porque a representação do ator verdadeiro de fazer amor parece ser mais perigoso do que documentários em que se mostram verdadeiras mortes.

Ou seja, pistolas podemos mostrar, mas pilas não… (risos)…

É isso.

Sabemos bem que nos Estados Unidos é o que se passa, certo?

Claro, mas também na Rússia e em todos os países islâmicos. O mundo está a tomar uma direcção um pouco estranha. É claro que na Europa não tive qualquer problema. O que acho é que o que existiu no mundo nos anos 70 está a desaparecer. Sexo só se pode mostrar se for no seu gueto…

No entanto, como sabe, o que filme tem uma vasta exploração na internet com os downloads. Eu próprio o revi para esta entrevista. Como encara essa divulgação paralela?

Claro. Eu não me preocupo muito. Até porque o filme foi barato – 2,5 milhões. E os investidores receberam o seu dinheiro logo no início. No entanto, acho que o filme poder ter uma exploração mais longa.

É estranho como as armas se sobrepõem a algo tão natural…

Eu terei tocado em armas talvez umas duas dezenas de vezes na minha vidas, mas sinto o meu sexo todos os dias. Portanto, umas vinte mil vezes…. (risos)

Depois deste filme fará algo completamente diferente?

Por um lado, queria fazer um documentário, mas também já me propuseram coisas. Um projecto anti-religioso, mas como é demasiado negro acho que terei de aguentar algum tempo. É sobre crueldade religiosa, baseada numa história verídica. Por outro lado quero também ter alguma paz na minha vida. Mas um grande documentário é algo que me interessa fazer também. Talvez agora.

Para terminar, no filme o actor (Gluckman) pergunta à rapariga qual é o seu filme favorito e ele diz-lhe que o seu é 2001, Odisseia no Espaço. Quando vi o filme quis logo fazer-lhe a mesma perguntar. É esse o seu filme favorito?

Sim, claro que esse é o meu filme favorito. É uma bíblia.

Acha que foi um filme que o impeliu de certa forma a pegar numa câmara e começar a fazer cinema?

Sim, quando vi o filme pela primeira vez era ainda muito jovem e esse filme fez-me fazer filmes mais tarde.

Ainda na Argentina?

Sim, na Argentina. Foi um filme que vi diversas vezes, pois era algo de várias reprises. Não só foi um filme que me levou a fazer cinema, mas também a tomar drogas psicotrópicas.

É claro que agora viaja muito com o filme. E em Portugal já tinha estado?

Sim, já tinha cá estado duas vezes. A primeira vez que vim a Lisboa, viajei de barco de Buenos Aires com a minha mãe e a minha irmã. Foram 15 dias de viagem… E estive também uma vez no Fantasporto, com a curta Carne (1991). De cada vez foi apenas um ou dois dias. A última vim de manhã e parti à noite, numa ação de promoção do Enter the Void. Acho que praticamente não conheço Lisboa. Gostava de conhecer melhor, mas agora tenho de ir para a Coreia… Quem sabe, para a próxima venho uma semana, para escrever.

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