Terça-feira, Novembro 5, 2024
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Retrospectiva Mizoguchi: gueixas, brumas e muito “amor fou”

Poderá ser redutor encarar o cinema de Kenji Mizoguchi como uma celebração do sacrifício feminino, embora essa submissão e dedicação esteja bem presente no trio de cópias restauradas com que a Leopardo Filmes nos brinda esta semana, A Mulher de Quem se Fala (1954), Contos da Lua Vaga (1953) e Os Amantes Crucificados (1954). Se bem que esse sentimento perpasse, de alguma forma, no total dos nove filmes cuja exibição será completada em meados de maio – mais próximo da data de nascimento do cineasta de Tóquio, 16 de maio – altura em que veremos O Conto dos Crisântemos Tradios (1939), A Senhora Oyu (1951), Festa em Gion (1953), O Intendente Sansho (1954), A Imperatriz Yang Kwei-Fei (1955) e Rua da Vergonha (1956)É o cinema da celebração desse eterno feminino.

Tentemos imaginar a estupefação do júri do festival de Veneza, quando em 1951 o ovni nipónico intitulado Rashomon, de um tal Akira Kurosawa, se intrometeu numa seleção competitiva totalmente dominada pelos EUA, GB e França, acabando mesmo por arrebatar o Leão de Ouro, superando concorrentes como Um Eléctrico Chamado Desejo, de Cukor, O Rio Sagrado, de Renoir, ou Diário de um Pároco de Aldeia, de Bresson. Provavelmente, muitos ter-se-ão interrogado como poderia o cinema japonês ter assimilado e aprimorado uma narrativa tão próxima a Shakespeare e dos cânones do cinema e linguagem ocidentais. Ainda que Rashomon, o tal filme profundamente japonês sobre uma violação refletida de forma diferente por várias personagens, em pouco ou quase nada se assemelhasse ao modo de produção de Hollywood.

É claro que a referência ao filme de Kurosawa é o que é, embora tenha este marco se fixar esta janela de descoberta do cinema japonês que teria nos anos 50 uma enorme vitalidade, em grande parte também pela exposição conseguida nos festivais de cinema europeus. Descoberta essa complementada pela obra de Kenji Mizoguchi que, entre 1952 e 1956, haveria de marcar uma indelével presença no festival no Lido e arrebatar uma inédita sucessão de prémios e nomeações, com A Vida de O’HaruOs Contos da Lua VagaO Intendente Sansho, A Imperatriz Yang Kwei Fei e ainda Rua da Vergonha e ainda por Yasushiro Ozu. Infelizmente, Ozu, que era amigo de Mizoguchi, seria descoberto um pouco mais tarde, embora devidamente reapreciado com o tempo – não falta mesmo quem considere que Ozu é mesmo o “mais japonês” dos mestres nipónicos.

Ora, este legado é invariavelmente associado a um cinema no feminino. No entanto é o próprio a esclarecer a sua justificação, provavelmente a dissipar algumas dúvidas artísticas, confessar ter sido “uma escolha comercial”. Declarações impressas no documentário Kenji Mizoguchi; The Life of a Filmmaker, de 1975, em que o cineasta invoca o trabalho do colega e amigo Minoru Murata, especializado em filmes apenas sobre homens. Por trabalharem ambos para o mesmo estúdio, Mizoguchi compreendeu que o melhor seria optar pelo género oposto. O que não significa que o meticuloso cineasta e apaixonado obsessivo por detalhes não fosse, também ele próprio, um ser bastante mulherengo, apesar de tímido, e frequentador de bordéis, tendo mesmo um episódio tão insólito e caricato, igualmente referido e comentado no documentário, em que é discutido o caso em que uma prostituta o teria apunhalado nas costas. De tal maneira que chegaria mesmo a dizer: “Só se pode verdadeiramente compreender as mulheres depois de ser esfaqueado por uma”…

Infelizmente, Mizoguchi haveria de desaparecer prematuramente, em 1956, precisamente no final dessa sucessão ímpar de obras-primas, numa altura em que também despontava o que veio a chamar de nouvelle vague e que tanto haveria de celebrar o seu cinema, em particular pelos elogios de André Bazin e co-fundador dos Cahiers du Cinéma. Por concluir ficaria também o projeto An Osaka Story, que escreveu e plenificou até ao fim dos seus dias em que foi consumido por doença.

Os Amantes Crucificados

Desde esse início dos anos 50 que o seu impressionante legado tem vindo a ser reavaliado. Como o fez também Paulo Rocha, desde logo pela retrospetiva que programou para a Gulbenkian, nos idos de 1976, reafirmando mesmo que “será preciso deixar passar ainda bastantes anos até que se possa serenamente estabelecer um acordo de base sobre o significado da sua obra”, como refere no catálogo que escreveu a partir de Tóquio, quando desempenhava ali as funções de adido cultural na embaixada portuguesa.

Imagine-se então os contornos deste cinema misterioso do Extremo Oriente, apesar dos frequentes paralelismos com os temas mais contemporâneos, e onde a condição feminina acaba sempre por assumir uma dimensão perene, ainda que cada frame esteja sempre envolto por fortes sinais artísticos milimetricamente medidos. Seja a influência do teatro Nô, das marionetes, bem como toda a poderosa iconografia em que as suas personagens, arquétipos de heróis nos dão diferentes vertentes de alguns temas mais ou menos universais. Isso sucede em Amantes Crucificados, talvez um dos seus melhores filmes, na adaptação do texto do famoso dramaturgo Chikamatsu, que viveu no século XVII, com assinalável obra assente no teatro kabuki. É aqui que se narra a imprevisível paixão entre um artesão de uma gráfica e a dama, esposa do seu patrão, acabando por configurar um crime de adultério, na altura punido com pena capital, ainda que de forma não intencional, pois existem outros elementos relevantes e muito atenuantes.

Quando Mizoguchi nos empurra para esta fuga do casal adúltero, já estamos rendidos a todo o seu envolvimento plástico e dramático, sejam as brumas, a floresta, o amor a bordo do bote após o pacto de morte. Até que esse amor se intromete como força que os segura para a vida. Mas não há como não ceder a essa imagem da dama a entregar a sua alma ao humilde servo, convivendo assim de perto com a eminência da morte. A história de um amor condenado a ser obra-prima.

A Mulher de Quem se Fala

A Mulher de Quem se Fala, também desse prolífico ano de 1954, remete o realizador para um dos seus temas, favoritos, a casa de gueixas, embora num filme moderno e não histórico (um Gendai-geki, portanto, e não o de época Jidai-geki), para encenar o novelo amoroso que se estabelece entre a filha dessa casa e um homem que se apaixona por ela imediatamente, sem saber que ele já era o amante da sua mãe. Um pouco até como a trama que atravessa Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, se nos é permitida a comparação audaz. E que motiva, de resto, um encontro e dilema entre mãe e filha. Como que a dizer que certos temas universais superam qualquer dimensão temporal.

Contos da Lua Vaga

E assim chegamos a Ugestu Monogatari, os Contos da Lua Vaga, projeto que Mizoguchi havia realizado um ano antes, e vencido o Leão de Prata em Veneza (distinção que recebeu por três vezes seguidas), uma obra que sintetiza, tal como Rashomon, diversas fontes literárias do ocidente e oriente, baseada nos contos de Akirari Ueda, bem como Maupassant. Esta narrativa é sintetizada depois numa única história em que uma mulher cede ao mundo masculino, durante a guerra civil japonesa do século XVI, descrevendo gente comum atirada para essa pira de violência e em busca de ascendência social. No fundo, o tema a guerra a dominar o filme, embora com a triste sorte de Ohama (Mitsuko Mito) a ser violada e a passar pela degradação da prostituição, tal como Miyagi (Kinuyo Tanaka), traída pela ganância do marido. Contudo, tanto uma como outra acabarão por chegar à solução do perdão e superando mesmo uma espécie de redenção. Ainda assim, duas mulheres que acabam por sintetizar esse ‘eterno feminino’ tantas vezes relatado por Mizoguchi.

É claro que neste imenso acervo é necessário destacar e exaltar o nome da incontornável Machiko Kyo, celebrizada precisamente em Rashomon e depois ascendendo ao estatuto de culto em Contos da Lua Vaga, mas sobretudo a atriz Kinuyo Tanaka, com participação em 15 filmes de Mizoguchi, bem como colaborações com Kurosawa e Ozu. De resto, aquela a quem o mestre dedicou um amor secreto, indizível, confessado apenas aos seus colaboradores, de tal maneira que a própria Kinyo, em entrevista, haveria de reconhecer esse rumor, ainda que sem a confirmação.

Deixemo-nos então entregues a esta retrospectiva de gueixas, brumas e, claro, muito “amour fou”.

A Mulher de Quem se Fala *****

Os Amantes Crucificados *****

Contos da Lua Vaga *****

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