Um documentário On the road e uma entrevista com a energia de Agnès Varda e a visão de JR. Sob a sombra de Jean-Luc Godard e o ‘momento Manoel de Oliveira’.
É um documentário subjetivo. Quem o define é a própria Agnès Varda, autora daquele que foi um dos eventos do passado festival de Cannes, mesmo exibido fora da competição oficial. Visages Villages, ou em português Olhares Lugares, é agora a grande estreia da semana, encenada por um fotógrafo de 33 anos e uma cineasta de 88, armados em street artists, viajando pela França afora, a bordo de uma carrinha, a fazerem imagens photomatons gigantes de gente pequenina.
Uma viagem repleta de descobertas, de pequenas histórias que acontecem no momento, da teimosia de JR em não tirar os óculos escuros; das conversas muito diretas de ambos, em permanente desafio salutar, contemplando a vida, a morte, a arte e a intromissão deles. Sobretudo quando se servem do indivíduo anónimo e o promovem a uma espécie de semi-deus que observa uma região com o seu imenso olhar e é visto enquanto tal. É um pouco isto que temos em Olhares Lugares. E é tão bom.
É isso, claro, mas também o improviso audaz da cineasta quando embarca numa romaria para tentar encontrar o amigo Jean-Luc Godard, com quem foi cúmplice a revolucionar o cinema, na sua casa na Suíça. Uma hipótese de encontro que foi suficiente para gerar uma das maiores expetativas vividas no maior festival do mundo. Esse foi o verdadeiro ‘momento Godard’.
Foi esta dupla divertida e cúmplice que encontrámos no espaço Unifrance do festival de Cannes, mesmo junto à marina, já a aguardar a entrevista marcada. A divertida Agnès, a tal senhora do cabelo branco e ruivo, ia procurando organizar o quarteto de jornalistas visivelmente entusiasmado com aquele ‘road movie’ visual.
Ela preferia o francês, mas resignou-se ao internacional inglês para acomodar quem não falava. Até porque Varda fala bem inglês, de resto viveu algum tempo nos Estados Unidos. Já o JR, o tal fotógrafo que durante o filme nunca tira os óculos escuros como condição, fala muito melhor inglês porque vive em Nova Iorque.
Damos o ponto de partida como deve de ser: Agnès, sente-se mais europeia que francesa? Resposta pronta: Sinto-me francesa, mesmo sendo o meu pai grego e parte da cultura belga, pois fui criada na Bélgica até aos 10 anos. Nesse sentido, tenho em mim algo de belga, de grego, apesar de ser realmente francesa. Antes de começar, JR surpreende ao remover os óculos escuros e a revelar o olhar. Sim, seria uma conversa de olhares nos olhos.
Olhares Lugares começou como um projeto arrojado, mesmo a pensar em escassas possibilidades de produção em sala. Com a ajuda da filha Rosalie Varda começou a procurar algum financiamento, depois do empurrãozinho de de um croudfunding que, literalmente, permitiu começar praticamente no dia seguinte. O que se vê no filme somos mesmo nós a conhecer-nos um ao outro, esclarece o fotógrafo. Nós tínhamos pressa, complementa Varda. Eu estou velha e não posso perder tempo. Com esse ‘croudfunding’ ganhamos 50 mil euros e partimos no dia seguinte. Tínhamos de perceber se o projeto iria funcionar. A grande diferença, continuou ele, foi sermos duas pessoas, termos o mesmo projeto, olharmos para as pessoas e fazermos estas imagens gigantes.
De certa forma, arriscamos a perguntar se esta forma de trabalho livre, experimental e em movimento não estaria mais próxima do trabalho de Varda no início da sua carreira e mesmo dentro de uma certa nouvelle vague. Sim, trata-se de liberdade, refere. Só que nessa altura, eu era diferente deles, eu estava mais interessada na estrutura e em conhecer pessoas do que os outros que faziam filmes maravilhosos. Sobretudo o experimental Godard. Ela que sugeriu uma alteração na viagem para visitar o amigo JLG na sua casa na Suíça. O ‘momento’ que se tornou ainda mais enigmático e misterioso com a mensagem dele.
Percebe-se a devoção, sem reverência. Ele (Godard) é o único com que tenho ligação até hoje, porque continua a ser totalmente livre – por vezes mesmo de forma insuportável, mas sempre livre. E complementa. Eu também tenho sido livre no meu trabalho, como este tipo, referindo-se a JR, a seu lado e ao seu trajeto de ir em redor do mundo a colocar olhos humanos em paisagens do Nepal, nos Jogos Olímpicos e um fresco incrível num bairro social em Paris de 35 metros.
Tivemos o ‘momento JLG’, mas haveríamos de ter também o ‘momento Oliveira’, quando lhe recordamos esse encontro para a série dela para a telvisão, Agnès de ci de la Varda, de 2011. O nome desperta dela uma emoção imediata. Mas não temos tempo, lamenta-se,a apressando-se a falar desses dez minutos que filmou com ele. E explica que é a vida como ela é, ao referir-se ao tempo. E confirma: eu tenho tanta peixão pelo cinema que não sinto as consequências da idade.
Será, afinal de contas, arte o gesto de também juntar pessoas? É disso mesmo que se trata Olhares Lugares. Um exercício do olhar, do olhar de Varda que é picado por agulhas, como parte do tratamento oftalmológico. Arrepiaram-se quando viram a agulha no olho?, ela quer saber. Já levei mais de 40 picadas. É esse olhar perfurado que seguimos incondicionalmente e essas reprodução em grandes planos. Imagens que criam ligações entre as pessoas, como sugere JR. É isso mesmo. Assim ficamos, ligados. Até porque, cada rosto é uma história.