Cinema Novo é o poderoso documentário de de Eryk Rocha sobre o movimento cinematográfico brasileiro revelador de uma geração que mudou o chip na forma como se via e fazia cinema naqueles meados dos anos 60. Chega finalmente ao nosso país, depois de ser exibido em Cannes, onde venceu o prémio Golden Eye, para o melhor documentário, em 2016, na sua segunda edição (o ano passado foi Olhares Lugares, de Agnès Varda). Passar ao lado deste poderoso filme é também deixar de se contagiar com a urgência de um cinema vibrante, inquieto nas propostas de um certo realismo social cansado de seguir o modelo americano.
Há sente que corre, cavalos que cavalgam, rostos em desespero. O movimento, a fotografia em preto e branco, a cidade, a favela, o campo do interior; a cores, uma mulher parece parir de pé um feto já adolescente, como que a dizer que é algo que já vem tarde, mas que é inevitável. Assim se apresenta Cinema Novo, o filme com o nome do movimento que pode até, de certa forma, ser considerado como uma réplica ao Tropicalismo que se vivia na música popular. Isto mesmo que o cinema jamais tenha atingido o fulgor popular que a expressão musical teve no seu país e fora dele. Talvez por isso, o único senão que apontamos a este documentário é o de estar demasiado virado para dentro de si próprio, para quem o conhece bem, já que raras vezes os excertos mostrados são acompanhados do título e autor das obras, deixando assim de fora parte do seu auditório, porventura menos conhecedor do enorme acervo de filmes que fazem parte desta complexa, ainda que sedutora edição.
Também se compreende que Eryk Rocha, filho do grande Glauber Rocha, uma das personalidades centrais do cinema brasileiro, recuse um formato didático para ilustrar um movimento cinematográfico assente num realismo naturalista e opte antes por uma reflexão de documento analítico e histórico, assente nos excertos de filmes e entrevistas desse movimento de amigos que filmavam diversas vezes em conjunto evidenciando toda a sua paixão pela liberdade. Talvez para não desvirtuar essa mesma proposta.
Contudo, essa realidade seria interrompida pelo regime político dominado pela Polícia Militar. De certa forma, um filme próximo do admirável No Intenso Agora, estreado há dias, em que João Moreira Salles, o irmão de Walter Salles, reflete um ponto de vista político, mas também familiar, quase sempre a preto e branco, tal como neste Cinema Novo.
São excertos de filmes de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, mas também Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Ruy Guerra, entre tantos outros, que vemos exacerbando a liberdade de movimentos, de gente a correr, de meninos das favelas, de gente do campo, que se confunde com a da cidade, com os cangaceiros do mato, com a ação, com o drama. Pelo meio, clássicos como Rio, 40 Graus, Terra em Transe, Macunaíma, Deus e o Diabo na Terra do Sol, o Pagador de Promessas, sempre com a vontade de chegar a um público que admite até para a câmara não apreciar esse cinema. Mas é esse cinema empenhado, militante, que vemos à procura das suas raízes, sem rejeitar as influências do neo-realismo de Rosselini, a montagem de Eisenstein ou a influência da nouvelle vague.
E quem são hoje os filhos desse cinema novo, dessa herança cultural? Seguramente, cineastas como Kléber Mendonça Filho, com o seu genial Aquarius, bem como O Som ao Redor, mas também João Dumans e Affonso Uchoa (Arábia), Karim Ainouz e Marcelo Gomes (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo) ou o mais recente de Ainouz (Central Airport THF), Gabriel Mascaro (Boi Néon), o próprio João Moreira Salles, ou até mesmo uma nova geração que tem em Juliana Rojas e Marco Dutra uma referência mais assente em cinema como género, por exemplo, evidenciada no excelente As Boas Maneiras, vencedor em Locarno, em que contribui a fotografia do português Rui Poças. São muitos e bons.