Este ano, decorreram 50 anos de 50 anos de Maio de 68, e do boicote de Jean-Luc Godard, François Truffaut e outros ao Festival de Cannes para chamar a atenção sobre o que se passava nas ruas de Paris. JLG voltou mesmo a Cannes, não só com novo filme, mas também para questionar de novo o que é o cinema. Regressar agora ao período de maoista de Godard com esta ficção de Hazanavicious não faz mal nenhum. Nem que seja para normalizar algo que por vezes parece apenas património da cinefilia. Sim, agora temos também um Godard para Totós.
Godard voltou a Cannes e Cannes a Godard. Desde logo, com a opção de voltar a usar uma imagem de um filme seu para o cartaz oficial da 71ª edição do festival – no caso, com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, Pedro o Louco, de 1965, apenas dois anos depois da opção por um elemento estético de O Desprezo, de 1963. Para além disso tivemos a exibição na seleção competitiva do seu novo filme Livre D’Image que suscitou reservas a alguns, bem como elogios a outros. Tal como a sua genial ‘aparição’ em forma de comunicação virtual, numa conferência de imprensa via FaceTime em que tivemos ocasião de confrontar este artista plástico avant garde das imagens. Goste-se ou não, Godard emana uma dimensão que vai para além do comum dos cineastas. E que ganhou mesmo um Prémio Especial inventado para Ele.
Aliás, já o ano passado, Godard tinha sido motivo de ‘aparência’ em Cannes por duas vezes está a ter alguma concorrência por parte de alguns eventos laterais que lhe roubam algum protagonismo. Desde logo pela projeção deste Le Redoutable, o tal filme sobre o cineasta Jean-Luc Godard, agora com o título Godard, o Temível, em estreia um ano depois, bem como a evocação no filme de Agnés Varda, Olhares Lugares, na sua romaria à casa do amigo JLG, que deixa essa presença de forma ainda mais espiritual.
Serve este intróito para apresentar a visão da vida em comum de Juan-Luc Godard e Anne Wiazemsky, a jovem atriz e 17 anos protagonista de La Chinoise (interpretada com vivacidade por Stacy Martin), com quem depois Godard casaria e viveria até ao fim da aventura fortemente politizada que teve com o grupo de produção comunitária Dziga Vertov.
Michael Hazanavicius, o autor do brilhante O Artista, navega de novo nas águas da criação do cinema, ao beber na biografia de Wiazemsky, Un An Après, para nos oferecer uma quase caricatura do realizador cinéfilo composta com assinalável brio por Louis Garrel. E onde o ator profere até esta frase: “Eu não sou o Jean-Luc Godard, sou um ator que faz de Godard”, mas para explicar como ele havia encarnado esse feroz animal político.
Temos então um Godard a viver o seu momento de reconhecimento, embora empenhado num aceso combate político de inspiração maoista e apresentado quase como instigador do movimento das ruas e de protesto de Maio de 1968. Apesar de tudo, não deixa de ser interessante a forma bastante próxima como Garrel incorpora a sua persona e diálogos fulminantes, talvez com a excepção do adorno capilar, incluindo mesmo o ligeiro ciciar da voz de Godard. Seja com os frequentes gags dos óculos que se partem e deixam o realizador míope quase sem ver, ou os comícios em universidades onde a sua formalidade militante recebe também o protesto dos presentes. A culminar até num encontro com o amigo Bernardo Bertolucci, que acaba mesmo numa crise entre ambos. O filme conta ainda com a presença de Bérénice Bejo, esposa do realizador, e presença regular nos seus filmes.
Talvez essa seja até uma forma de criar um filme sobre Godard, ou seja, criar uma personagem embora sem correr o risco de cair na cinéfila pura que afastaria potenciais espectadores. Só que o reverso acaba também por ser uma espécie de JLG para totós, já que apoiada nessa superficialidade caricatural, como se o autor de O Desprezo, fosse encarado como uma figura colorida e iconoclasta. De resto, o filme não esquece o famoso boicote que Godard e Claude Lelouch fizeram na edição desse ano de 1968 do festival de Cannes, logo após a exibição restaurada de E Tudo o Vento Levou, em que o cineasta tomou o palco para anunciar que teriam de suspender o evento para se solidarizarem com a luta estudantil nas ruas de Paris.
Resta acrescentar que o título Le Redoutable é o nome do primeiro submarino nuclear francês que motiva uma música que Godard e Anne cantam no início, talvez a afirmar o poder explosivo do seu cinema. E talvez esta opção de comédia ligeira seja mesmo a forma possível de mostrar uma das facetas deste realizador que ainda hoje não encontrou substituto para um cinema verdadeiramente revolucionário e inovador. Resta saber se é nessa versão de cinema de entretenimento que o verdadeiro JLG melhor se revê.