(reprodução da análise publicada no festival de Cannes 2018)
O cinema português já deixou a sua marca em Cannes com a primeira longa metragem de Gabriel Abrantes. ‘Diamantino’ é o outro lado da vida de um astro de futebol, a maior estrela da bola em Portugal. Pelo meio, avalia-se o Sebastianismo, o flagedos dos refugiados europeus e o extremismo.
No dia em que vimos o Livre D´Image, de Godard, talvez o único cineasta vivo que é alvo de uma devoção quase religiosa – mesmo que o seu filme seja mais divisório que consensual -, descobrimos também Diamantino, o delírio surreal de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt. O que apetece dizer já é que se trata do par de filmes mais insólito do festival, pelo menos até ao momento, embora nos pareça difícil de superar a ousadia de rasgar desta forma os limites do cinema.
Não deixa de ser uma coincidência feliz, o facto de Godard gozar desse estatuto para além do comum e de Abrantes estudar os contornos de um semi-deus do desporto chamado Diamantino Matamouros, em que Carloto Cotta num misto de sotaque madeirense e açoriano, recria uma inacreditável réplica de Cristiano Ronaldo, dando-nos o retrato íntimo de um anjo caído e até da constelação de interesses colaterais que gira em seu redor.
Uma coisa é certa, Diamantino é um filme totalmente calhado para a Semana da Crítica. De resto, Charles Tesson, o diretor dessa secção paralela do festival de Cannes mais dedicada às novas tendências do cinema, mostrou-se visivelmente fascinado pelo filme do luso-americano Abrantes e do americano Daniel Schmidt. Logo na apresentação do filme, apareceu no palco com a t-shirt do filme na mão e a anunciar que tinha assinado pelo clube Diamantino FC. E na sua página de twitter (@Tesson 5475), onde já tem vários tweets sobre o filme, sugere como pergunta do dia, se o clube Diamantino FC usa o número 00, se não seria boa ideia CR7 passar a usar CR007.
Enfim, é o buzz Diamantino a contar com um o empurrãozinho de Tesson. Mesmo sem ser um filme consensual, são já muitos os colegas que atribuem ao filme essa dimensão única. Vamos ver se Diamantino Matamouros não sai de Cannes com um prémio – Semana da Crítica ou mesmo Camera D’Or, para a melhor primeira longa. Para já ainda não vimos nenhuma melhor.
Pensando em Gabriel Abrantes não é difícil antecipar que a sua primeira longa não estaria muito distante do vasto e seguro trabalho de pesquisa estética desenvolvido ao longo de algumas curtas de Abrantes e Schmidt, pelo menos desde 2006, em que iniciaram esta colaboração com A History Of Mutual Respect.
É dessa condição que parte Gabriel Abrantes, tal como nos havia explicado em janeiro, numa entrevista em Berlim, onde concorria com a sua curta genial Os Humores Artificiais aos Prémios do Cinema Europeu, em que estudou bastante essa qualidade quase sobrenatural de certos desportistas, sobretudo a partir da sua inspiração de dois textos de David Foster Wallace, um autor americano dos anos 90 e 2000, sobretudo a relação que estabelecia entre o génio estético e o desporto, dando mesmo exemplos da Renascença e de Miguel Ângelo, considerado na altura como uma entidade quase sobrenatural, por se conseguir aproximar na perfeição, algo que estava vedado aos outros mortais. Pegámos então no desportista como uma metáfora para a estética de hoje, refere. E exploramos ainda a análise do que proporciona isso, do que está por detrás da máscara que cria estes eventos divinos.
Genial logo a primeira sequência em que a voz off de Diamantino, no tal sotaque macarrónico, assume essa proximidade com a divindade, até porque o seu pai (o cada vez mais inevitável Chico Chapas) lhe dizia que era o novo Miguel Ângelo. Vemo-lo então no seu santuário, uma catedral de futebol em que Portugal disputa a final do Mundial com a Suécia e que caberá ao astro Diamantino a tarefa de concretizar um penalti no último minuto.
Embora por aqui passará a malapata lusitana de um anjo caído em que irão repousar os destinos de uma “nação que nunca foi pequena”, hipóteses e clonagem e ainda a sensacional presença das gémeas Anabela e Margarida Moreira, que mais parecem clonadas, a dar corpo às manas ambiciosas do Tino. E e ainda uma incrível cameo de Manuela Moura Guedes. Por aqui nos ficamos, para não incorrer em spoilers que poderiam tirar parte do sincero gozo que tivemos a ver este filme.
Ainda assim, sempre poderemos referir os cãezinhos felpudos que fazem partes do imaginário alucinado deste craque, mas pouco dotado de massa cinzenta, que vive num palacete na Madeira e desfruta no tempo livre e da sua vida centrada em si mesmo no seu iate. Isto até descobrir que existem pessoas com dificuldades, como os “refugiadozinhos” que colhe do mar e que acabam por mudar a sua vida.
O que é importante referir é a forma muito equilibrada como a dupla Abrantes-Schmidt conseguem gerir uma narrativa ao mesmo tempo atrevida e provocadora, na forma como cria essa aproximação tão forte ao mundo dos astros do futebol, sem deixar de ser hilariante e um olhar de contemplação pelo nosso Portugal ‘que nunca foi pequeno, como diz Gabriel no filme, com alguma ironia. Talvez até para recordar um certo “non” sebastiânico, em que tanto se é estrela ou lixo – olha, por exemplo, como no festival da canção. E vamos lá ver no Mundial. Lá está, um filme capaz de gerar reações de amor-ódio. Mas esse é também o seu primero sinal de vitalidade.
Servimo-nos de nova declaração de Gabriel Abrantes, na mesma entrevista, em que se define “como um artista, um realizador, embora interessado em problemas correntes, como a A.I., a proteção dos direitos indígenas, dos direitos ecológicos. Depois tenho também a minha maneira louca, cómica, satírica de brincar com esses conteúdos. Mais do que exprimir uma identidade nacional”. Isso está tudo no filme.